Jorge Eiró, Jazidas de ouro e sangue (dos Labirintos Líquidos do Coração), 2019.
2019.    Jorge Eiró
Exposição “Tanto Mar”

Texto crítico para a exposição Tanto Mar, de Jorge Eiró, no Espaço Santa Catarina, em Lisboa

Utopia de um homem que navega
 
Em veleiro de azulejos de um outro barroco da Belém de cá, o artista toma o oceano aberto, rumo a um lugar utópico. Não navega com a bússola: o sismógrafo é seu guia. O detector dos sintomas, das paixões, do id. Ide! Andarilho dos Andes luso-andaluzes, prefere navegar por não-lugares, pois assim o permite a serenidade. Procura, lá fora, um lugar que corresponda a seus elaborados mapas que defende e intervém com seu pincel-espada. Estas cartografias, que podem ser utilizadas tanto por técnicos geógrafos por sua precisão científica-alquimista, quanto para ilustrar as mais oníricas fábulas do realismo mágico e cartões postais de uma cidade delirante, misturam-se entre palavras aquareladas e imagens datilografadas. Estão espelhadas em labirintos de bronze com muitas escadas, portas e muros. Às vezes, se chamam Mnemosyne; às vezes, Babel.
    Ao pé de cada degrau, o navegante-cais escreve em seu mapa um retrato dos belíssimos fantasmas que encontra. Algumas destas imagens são recorrentes, embora nunca se reconheçam iguais, pois são sempre dobradas, espelhadas e manipuladas pelo tecnológico método do cartógrafo, operado entre astrolábios amorosos, esquadros quânticos e curiosos microscópios de vidro verde com uma estrela vermelha. Arquiteta-se, nestas escrileituras, a estrutura de um romance colecionista, fragmentos de um discurso amoroso, um devir inacabável, com alguns protagonistas. A ninfa, a Belém memoriosa, flui graciosamente pelo labirinto: as dobras de suas vestes líquidas de um ocre terroso tentam e refletem a calma saudade do navegante de sempre ter aonde ir. A imagem da mênade se repete infinitamente nos espelhos do labirinto, onde a distinção entre o original e o espelhado não tem importância. A serpente, seu dragão de São Jorge, ostenta ser o emblema de seu vastíssimo bestiário, encanto dos mais audaciosos naturalistas que já sonharam com as fantasias amazônicas.
    E, assim, audaciosa e apaixonadamente, o navegante-dédalo monta seu arquivo, sem ser assombrado por sua infinitude. Afinal, como carregar o peso do universo sobre as costas? Como manejar os astros? O cicerone atlântico contempla sua constelação de afetos na noite estrelada sobre o Guamá enquanto repousa no dorso do seu dragão. Nessa confusão de imagens sobreviventes, se sente em casa. Está feliz. Procura um porto e percebe que o é.

Texto originalmente publicado na exposição “Tanto Mar”, coletiva de Jorge Eiró, Geraldo Teixeira, Ruma de Albuquerque, Marcone Moreira e Genison Oliveira, no Espaço Santa Catarina, em Lisboa, de 7 a 20 de novembro de 2019.

Jorge Eiró, Das Fortalezas da Solidão (“Todo cais é uma saudade de pedra” - F.P.), 2019.


Jorge Eiró, A Grande Onda em Nazaré – Surfando com Hokusai e Van Gogh (na companhia de Geraldo e Ruma), 2019.