Bruno Novaes, Contraturno, 2020.
2022. Bruno Novaes
Exposição “Complete as lacunas”
Texto crítico para a exposição individual de Bruno Novaes no Espaço Força e Luz, em Porto Alegre
WEB
Texto crítico para a exposição individual de Bruno Novaes no Espaço Força e Luz, em Porto Alegre
WEB
O homem incapaz
Imaginemos um homem que não pode. Um homem que, sem motivos concretos, tem sua palavra duvidada, suas atitudes questionadas e suas formas de pensar censuradas. Cuja postura é criticada, crucificada, exposta e amplamente discutida, a tribunais abertos onde todos são juízes, chefes de pequenos impérios. Um homem que tem sua capacidade desvalorizada, que nem tudo sabe, que nem tudo pode, que nem em todos os lugares está. Sob as matrizes do senso comum, imaginar esse homem incapaz — sobretudo sendo ele cisgênero, branco, com formação acadêmica e sem nenhuma deficiência física — é extremamente difícil.
A sociedade contemporânea ocidental impôs definições estritas de masculinidade e feminilidade, numa perspectiva pífia fundamentada na binariedade dos gêneros e na ferrenha misoginia. O cenário supracitado é cotidianamente vivenciado por mulheres pelo fato de serem mulheres. Nos panoramas atuais, essa construção imagética e heroica do homem aproxima-se com uma visão divina - não por acaso esse homem ideal é onipotente, onisciente e onipresente. As consequências práticas sobre seus erros são ditadas por outros fatores, sobretudo raciais, socioeconômicos, de orientação sexual e de gênero.
Na casa e na escola infantil, lugares de cuidado e zelo, perpetua-se a dinâmica falha de que quem cuida é a mulher, enquanto o homem é cuidado. Nas universidades, entidades governamentais e grandes instituições, o cenário se inverte: o homem ensina e a mulher aprende. De forma injusta, os poderes gozados pelas pessoas que se encaixam nessa masculinidade normativa são infinitamente maiores do que os possíveis às mulheres, aos homens que se aproximam de um modelo convencionado feminino ou às pessoas que não obedecem à tosca divisão binária de gênero. Paulatinamente, em grandes fôlegos de coragem, desacelerados pela atroz violência social brasileira, somos consolados com ondas confiantes de mudança. É nesse caminho revitalizante de esperança que se encontra o trabalho de Bruno Novaes.
A prática e a pesquisa do artista nos confrontam com as limitações e censuras contidas na determinação comum de masculinidade. Complete as lacunas, sexta exposição individual de Novaes – e primeira individual em Porto Alegre –, busca exibir os vazios no atual sistema dominante e investigar possibilidades de respondê-los, flertando com um tom imperativo dos comandos de questões de exames escolares. O artista indica três eixos que estruturam o sistema educacional atual: o patriarcalismo, o colonialismo e o heterocentrismo. De forma canibal, a estrutura se retroalimenta desses princípios, criando e mantendo empecilhos para que esses assuntos sejam de impossível debate com os alunos, ou mesmo incorporados a novos projetos pedagógicos mais plurais.
No trabalho Quais as distâncias entre o seu corpo e o corpo que lhe ensinaram? (2016/2021), o artista reitera a condução do pensamento através de uma matriz violenta não somente no campo pedagógico, mas também no campo epistemológico e científico, onde a própria “produção de conhecimento” é nutrida e estruturada por esses ideais – como o racismo científico de Nina Rodrigues e a repulsa pelo contato íntimo com pessoas de mesmo sexo de William James, por exemplo. A obra, que grafa tanto a própria pergunta em caligrafia escolar, delicada e regular, quanto propõe combinações múltiplas de sobreposição e deslocamento do corpo humano nu em repetidas imagens de mimeógrafo, permite visualizar o conhecido diagrama de crescimento do corpo humano com outras possibilidades de identidade de gênero. Diante da obra, permite-se a autorreflexão individual do observador e análise se, de fato, há uma identificação espontânea com os estereótipos de corpos e gêneros que usualmente são ensinados no sistema educacional. Os mesmos mecanismos questionadores são retomados por Novaes em Apostila de ciências: ensino fundamental (2016), com título a partir de um jogo de palavras que declara que, nessa estrita educação do caráter, os moldes heteronormativos e cisgêneros são realmente de ensino fundamental, no sentido estrutural do termo.
A apresentação dessas pluralidades reais é vista como um discurso violento, quando, na verdade, o silêncio sobre esses tópicos perpetua uma sociedade violenta. A tinta vermelha que escreve O resto do mundo não tem qualquer interesse na obra homônima (2020) serve como alegoria ao sangue derramado pela ineficácia em cadeia do sistema educacional brasileiro – que, não nos esqueçamos, é planejada, não acidental. Esse sangue, vermelho pulsante, pode ser lido como instrumento de correção: assim como o vermelho da caneta do professor e da professora corrige, aponta os erros e pune, a violência é resultante de uma tentativa de correção social, de violentar quem não se encaixa nas normas estabelecidas e esperadas. Quando nos debruçamos sobre essas questões, a impressão, de fato, é que o resto do mundo não tem mesmo qualquer interesse – como aponta o título da obra de Novaes. A estratégia militaresca de uma aprendizagem que tem a repetição como ferramenta basilar, objetivando um resultado quase mecânico, moldado e previsível, serve como mecanismo de manutenção das corrupções tradicionais.
Em Corpo decente (2018), instalação composta por dezenas de quilos de giz branco de lousa, pintura meia parede com tinta esmalte brilhante e áudio de 50 minutos em looping com depoimentos de professores censurados e discriminados, Novaes materializa seus questionamentos-protagonistas em um cenário que, ao mesmo tempo que aparenta ser escolar, flerta com a desordem. A pintura meia parede em esmalte, embora traga cor e certo aspecto lúdico e mais amigável ao rígido ambiente branco da sala de aula, tem um principal aspecto funcional: evitar manchas e sujeiras na parede, resultantes do contato das mãos e dos pés sujos das crianças em sua brincadeira irrefletida ou dos desenhos no tempo congelado da ingenuidade. As vozes e histórias de professores tolhidos pelo estrito sistema educacional reverberam pelas paredes e se espalham pelo amontoado de gizes indiferenciados que jazem ao chão, no canto da sala, quase como em posição de castigo. Nessa pilha tumultuada, é impossível distinguir o que foi – ou seria – usado para ministrar aulas sobre guerras e sistemas reprodutores, e os que desenhariam jogos de amarelinha no chão, ou obscenidades infantis desenhadas no momento de intervalo entre as aulas, sem a supervisão dos professores. Todas as barrinhas cilíndricas, da mesma cor e do mesmo diâmetro, são apinhadas de forma massificada e desregrada, sem respeitar as possíveis individualidades que cada giz poderia traçar.
A educação de crianças na sociedade ocidental contemporânea, como já mencionado, é mormente capitaneada por professoras mulheres, que carregam consigo uma imagem de afabilidade e de proximidade à figura materna. O vínculo familiar da figura feminina é quase forçado, fazendo com que as crianças usualmente as chamem de “tias”. A partir dessa visão tacanha, se faz impossível – ou duvidoso, pelo menos – um homem adulto aproximar-se de crianças sem que a balança seja desequilibrada: ou o homem regride cronologicamente ao estado da criança, numa pseudo-infantilização; ou a criança é avançada no tempo ao estágio do homem adulto, promovendo uma hipersexualização dos assuntos a serem conversados. Esse professor, portanto, ou é visto como limitado, em uma situação onde seus questionamentos e gostos aproximam-se aos de uma criança; ou é visto como pederasta, onde a aproximação tem a exclusiva finalidade afetiva e sexual.
A obra Jogo dos erros (2018) narra uma história de discordância onde, em um ofício rasurado – para resguardar a individualidade do sujeito –, famílias de religiões conservadoras acusam o professor de aliciar os alunos ao apresentar-lhes uma realidade julgada como inapropriada. De forma metalinguística e irônica, Novaes escancara os erros: as interferências conservadoras, as dissonâncias ideológicas e a restrição do sujeito na educação formacional infantil. As possibilidades de amar e de ser amado, de aceitar e de ser aceito, e de aprender a conviver com as diferenças são rasuradas – assim como faz o artista nos ofícios fotocopiados – ou apagadas – como o pó de giz que repousa sobre o descanso dos apagadores de feltro à base da lousa. O professor queda-se incapaz. Novaes reitera que, ao início da aula, quando a campa toca, as diversas vulnerabilidades pessoais não devem ser guardadas, mas utilizadas como ferramentas e processos educacionais; e, ao fim da classe, quando resta só o professor com seus apontamentos, em uma sociedade tão dura e áspera, lembre-se da convocação de Paulo Freire: “amar é um ato de coragem”. Que sejamos corajosos e incapazes.
Texto originalmente publicado na exposição “Complete as lacunas”, individual de Bruno Novaes no Espaço Luz e Força (ELF Cultural), em Porto Alegre (RS), de 29 de abril a 4 de junho de 2022
Imaginemos um homem que não pode. Um homem que, sem motivos concretos, tem sua palavra duvidada, suas atitudes questionadas e suas formas de pensar censuradas. Cuja postura é criticada, crucificada, exposta e amplamente discutida, a tribunais abertos onde todos são juízes, chefes de pequenos impérios. Um homem que tem sua capacidade desvalorizada, que nem tudo sabe, que nem tudo pode, que nem em todos os lugares está. Sob as matrizes do senso comum, imaginar esse homem incapaz — sobretudo sendo ele cisgênero, branco, com formação acadêmica e sem nenhuma deficiência física — é extremamente difícil.
A sociedade contemporânea ocidental impôs definições estritas de masculinidade e feminilidade, numa perspectiva pífia fundamentada na binariedade dos gêneros e na ferrenha misoginia. O cenário supracitado é cotidianamente vivenciado por mulheres pelo fato de serem mulheres. Nos panoramas atuais, essa construção imagética e heroica do homem aproxima-se com uma visão divina - não por acaso esse homem ideal é onipotente, onisciente e onipresente. As consequências práticas sobre seus erros são ditadas por outros fatores, sobretudo raciais, socioeconômicos, de orientação sexual e de gênero.
Na casa e na escola infantil, lugares de cuidado e zelo, perpetua-se a dinâmica falha de que quem cuida é a mulher, enquanto o homem é cuidado. Nas universidades, entidades governamentais e grandes instituições, o cenário se inverte: o homem ensina e a mulher aprende. De forma injusta, os poderes gozados pelas pessoas que se encaixam nessa masculinidade normativa são infinitamente maiores do que os possíveis às mulheres, aos homens que se aproximam de um modelo convencionado feminino ou às pessoas que não obedecem à tosca divisão binária de gênero. Paulatinamente, em grandes fôlegos de coragem, desacelerados pela atroz violência social brasileira, somos consolados com ondas confiantes de mudança. É nesse caminho revitalizante de esperança que se encontra o trabalho de Bruno Novaes.
A prática e a pesquisa do artista nos confrontam com as limitações e censuras contidas na determinação comum de masculinidade. Complete as lacunas, sexta exposição individual de Novaes – e primeira individual em Porto Alegre –, busca exibir os vazios no atual sistema dominante e investigar possibilidades de respondê-los, flertando com um tom imperativo dos comandos de questões de exames escolares. O artista indica três eixos que estruturam o sistema educacional atual: o patriarcalismo, o colonialismo e o heterocentrismo. De forma canibal, a estrutura se retroalimenta desses princípios, criando e mantendo empecilhos para que esses assuntos sejam de impossível debate com os alunos, ou mesmo incorporados a novos projetos pedagógicos mais plurais.
No trabalho Quais as distâncias entre o seu corpo e o corpo que lhe ensinaram? (2016/2021), o artista reitera a condução do pensamento através de uma matriz violenta não somente no campo pedagógico, mas também no campo epistemológico e científico, onde a própria “produção de conhecimento” é nutrida e estruturada por esses ideais – como o racismo científico de Nina Rodrigues e a repulsa pelo contato íntimo com pessoas de mesmo sexo de William James, por exemplo. A obra, que grafa tanto a própria pergunta em caligrafia escolar, delicada e regular, quanto propõe combinações múltiplas de sobreposição e deslocamento do corpo humano nu em repetidas imagens de mimeógrafo, permite visualizar o conhecido diagrama de crescimento do corpo humano com outras possibilidades de identidade de gênero. Diante da obra, permite-se a autorreflexão individual do observador e análise se, de fato, há uma identificação espontânea com os estereótipos de corpos e gêneros que usualmente são ensinados no sistema educacional. Os mesmos mecanismos questionadores são retomados por Novaes em Apostila de ciências: ensino fundamental (2016), com título a partir de um jogo de palavras que declara que, nessa estrita educação do caráter, os moldes heteronormativos e cisgêneros são realmente de ensino fundamental, no sentido estrutural do termo.
A apresentação dessas pluralidades reais é vista como um discurso violento, quando, na verdade, o silêncio sobre esses tópicos perpetua uma sociedade violenta. A tinta vermelha que escreve O resto do mundo não tem qualquer interesse na obra homônima (2020) serve como alegoria ao sangue derramado pela ineficácia em cadeia do sistema educacional brasileiro – que, não nos esqueçamos, é planejada, não acidental. Esse sangue, vermelho pulsante, pode ser lido como instrumento de correção: assim como o vermelho da caneta do professor e da professora corrige, aponta os erros e pune, a violência é resultante de uma tentativa de correção social, de violentar quem não se encaixa nas normas estabelecidas e esperadas. Quando nos debruçamos sobre essas questões, a impressão, de fato, é que o resto do mundo não tem mesmo qualquer interesse – como aponta o título da obra de Novaes. A estratégia militaresca de uma aprendizagem que tem a repetição como ferramenta basilar, objetivando um resultado quase mecânico, moldado e previsível, serve como mecanismo de manutenção das corrupções tradicionais.
Em Corpo decente (2018), instalação composta por dezenas de quilos de giz branco de lousa, pintura meia parede com tinta esmalte brilhante e áudio de 50 minutos em looping com depoimentos de professores censurados e discriminados, Novaes materializa seus questionamentos-protagonistas em um cenário que, ao mesmo tempo que aparenta ser escolar, flerta com a desordem. A pintura meia parede em esmalte, embora traga cor e certo aspecto lúdico e mais amigável ao rígido ambiente branco da sala de aula, tem um principal aspecto funcional: evitar manchas e sujeiras na parede, resultantes do contato das mãos e dos pés sujos das crianças em sua brincadeira irrefletida ou dos desenhos no tempo congelado da ingenuidade. As vozes e histórias de professores tolhidos pelo estrito sistema educacional reverberam pelas paredes e se espalham pelo amontoado de gizes indiferenciados que jazem ao chão, no canto da sala, quase como em posição de castigo. Nessa pilha tumultuada, é impossível distinguir o que foi – ou seria – usado para ministrar aulas sobre guerras e sistemas reprodutores, e os que desenhariam jogos de amarelinha no chão, ou obscenidades infantis desenhadas no momento de intervalo entre as aulas, sem a supervisão dos professores. Todas as barrinhas cilíndricas, da mesma cor e do mesmo diâmetro, são apinhadas de forma massificada e desregrada, sem respeitar as possíveis individualidades que cada giz poderia traçar.
A educação de crianças na sociedade ocidental contemporânea, como já mencionado, é mormente capitaneada por professoras mulheres, que carregam consigo uma imagem de afabilidade e de proximidade à figura materna. O vínculo familiar da figura feminina é quase forçado, fazendo com que as crianças usualmente as chamem de “tias”. A partir dessa visão tacanha, se faz impossível – ou duvidoso, pelo menos – um homem adulto aproximar-se de crianças sem que a balança seja desequilibrada: ou o homem regride cronologicamente ao estado da criança, numa pseudo-infantilização; ou a criança é avançada no tempo ao estágio do homem adulto, promovendo uma hipersexualização dos assuntos a serem conversados. Esse professor, portanto, ou é visto como limitado, em uma situação onde seus questionamentos e gostos aproximam-se aos de uma criança; ou é visto como pederasta, onde a aproximação tem a exclusiva finalidade afetiva e sexual.
A obra Jogo dos erros (2018) narra uma história de discordância onde, em um ofício rasurado – para resguardar a individualidade do sujeito –, famílias de religiões conservadoras acusam o professor de aliciar os alunos ao apresentar-lhes uma realidade julgada como inapropriada. De forma metalinguística e irônica, Novaes escancara os erros: as interferências conservadoras, as dissonâncias ideológicas e a restrição do sujeito na educação formacional infantil. As possibilidades de amar e de ser amado, de aceitar e de ser aceito, e de aprender a conviver com as diferenças são rasuradas – assim como faz o artista nos ofícios fotocopiados – ou apagadas – como o pó de giz que repousa sobre o descanso dos apagadores de feltro à base da lousa. O professor queda-se incapaz. Novaes reitera que, ao início da aula, quando a campa toca, as diversas vulnerabilidades pessoais não devem ser guardadas, mas utilizadas como ferramentas e processos educacionais; e, ao fim da classe, quando resta só o professor com seus apontamentos, em uma sociedade tão dura e áspera, lembre-se da convocação de Paulo Freire: “amar é um ato de coragem”. Que sejamos corajosos e incapazes.
Texto originalmente publicado na exposição “Complete as lacunas”, individual de Bruno Novaes no Espaço Luz e Força (ELF Cultural), em Porto Alegre (RS), de 29 de abril a 4 de junho de 2022
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