Cao Fei, Whose Utopia?, 2006, video, 19’58”
Como desaparecer completamente (ou se diferenciar digitalmente)

Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe sobre exposição da artista em São Paulo

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Com a exposição ‘Cao Fei: O Futuro Não É Um Sonho’, em cartaz na Pina Contemporânea, artista chinesa investiga as imbricações entre subjetividade e tecnologia

A artista chinesa Cao Fei é uma das principais referências nas interseções entre tecnologias digitais e artes visuais. Nascida em 1978, em Cantão, Fei graduou-se na Academia de Belas Artes de sua cidade natal, em 2001. Sua produção multiplataforma – com enfoque em vídeos, fotografias e instalações – endereça, desde o início, as relações humanas com os sistemas produtivos modernos em seu país. Cantão, megalópole com mais de 18 milhões de habitantes, além de ser um dos principais centros comerciais e industriais da China, é um dos maiores núcleos nacionais de indústrias de inovação tecnológica, tendo protagonismo como parque de pesquisas científicas no sul do país.
    Em suas narrativas, Fei atrita compreensões de realidade e ficção ao associar a utopia tanto com um estado vertiginoso da própria consciência contemporânea quanto com uma possibilidade de escape do real. Documentação e surrealismo, em sua prática, andam lado a lado. As interferências robóticas no comportamento humano, as reengenharias da subjetividade pela tecnologia e as dinâmicas naturais reconfiguradas em lógicas industriais são fagulhas utópicas que, ao colidirem com sistemas culturais chineses construídos há milênios, geram curtos-circuitos de percepção. A artista, de modo a enfatizar esse limiar crítico, atenta a uma contemporaneidade repetidamente maculada por princípios coloniais. Ela demonstra que há um apagamento histórico premeditado pela fragmentação e pela velocidade das informações, caminhando para uma crise social que já lida com seus escombros.

O futuro não é um sonho
A Pinacoteca de São Paulo apresenta Cao Fei: O Futuro Não É Um Sonho, a primeira individual da artista na América Latina, em cartaz até 14 de abril de 2024. Curada por Pollyana Quintella, a mostra reitera como Fei propõe leituras que não se restringem ao território chinês. Embora se atenha ao cruzamento de especificidades, tradições e respostas no contexto de seu país de origem, a artista propõe questionamentos que atravessam a cultura ocidental, sobretudo de matrizes de pensamento introjetadas por dinâmicas de exploração colonial em lugares detentores de culturas milenares. Além de ampliar reflexões sobre a transformação de países como a Índia, o México, o Brasil e a Coreia do Sul sob o prisma geopolítico atual, demonstra peculiaridades das histórias conectadas na China, no embate entre tradições há muito estabelecidas e hibridismos culturais resultantes desses intercâmbios. Destacam-se, também, as conexões extrageográficas que pessoas de diversas nações estabelecem através da internet, na percepção da artista sobre as possibilidades interativas, rizomáticas e subjetivas, com esse ambiente.

Expansão urbana e ecologia robótica
A artista não somente utiliza ferramentas digitais, como vídeos, letreiros, iluminação e equipamentos eletrônicos, para a composição de suas obras e instalações, mas também analisa de forma crítica e irônica a infiltração desses entes artificiais em uma convencionada nova natureza. Na série de trabalhos intitulada Rumba (2015-2017), Fei demonstra como o pensamento técnico globalizante acomete outras relações humanas, das interações sociais às dúvidas existenciais e às relações ecológicas. Em Rumba II: Nomad (2015), Cao Fei apresenta um vídeo em que aspiradores de pó robôs exploram uma área suburbana de Pequim repleta de escombros. O impacto ambiental da galopante expansão urbana chinesa prova-se insustentável: edifícios de regiões inteiras são demolidos para dar lugar a novas ocupações. Os robôs, que exploram o espaço por meio de suas rodinhas e sensores, ao mesmo tempo que surgem como seres vindos de outro planeta, também parecem animais naturais à paisagem destruída em que vagam, em uma artificialidade pós-apocalíptica.   
    Em Rumba 1: Incubator (for Parket no.99) (2017), Fei nos alerta para como as tecnologias humanas têm invadido processos naturais, em melhoramentos e clonagens genéticas, fertilizações in vitro e na criação de biomateriais protéticos. Em ambos os trabalhos, a artista sugere que membros dos sistemas locomotores e psíquicos têm sido atropelados – ou propositalmente postos em obsolescência – pelo desenvolvimento científico, apontando possíveis substituições de patas, pernas e pés por rodas e esteiras, e de olhos por sensores de aproximação e movimento. De modo análogo, propõe zumbis como hibridações humanas frutos da modernidade, como em Haze and Fog (2013). As mudanças não acontecem só nos animais, mas em outras entidades naturais: a diversidade da flora é mimetizada por objetos decorativos de plástico, e fluxos de rios dão lugar às gigantescas esteiras de linhas de produção de empresas chinesas, como em Whose Utopia (2006).
    Em diversos trabalhos, Cao Fei apresenta situações de faísca entre o rigor maquínico e a organicidade humana. Aparecem como glitches que infectam ambientes fabris com a liberdade sinuosa da coreografia – como em Whose Utopia (2006) –, inserem expressões afetivas em seres artificiais/miméticos – como na série Asia One (2018) – ou apresentam cosplayers em meio à seriedade dos canteiros de obra de superempreendimentos – como em Bunny’s World (2005), da série Un-Cosplayer. Como resistência a sistemas dominantes que tentam aprisionar e domar individualidades em sistemas produtivos, a artista apresenta a série de fotografias My Future Is Not a Dream (2006), em que chineses ostentam planos de futuro que desviam das profissões fabris e se encaminham para vertentes artísticas, como músicos, bailarinos e mestres de tai chi. O desvio da formação cultural alinhada à lógica capitalista é uma das denúncias feitas pelo trabalho de Fei, apontando um sistema que proporciona incentivos culturais majoritariamente a países colonialistas.

Imersividade e distanciamento social
Diversas obras de Fei criam um ambiente imersivo, próximas às experiências em realidades virtuais. Entretanto, por mais que as tecnologias almejem uma imersividade total, Cao Fei ressalta que há sempre um atraso causado pelos próprios artefatos tecnológicos, permanentemente aquém das compreensões fisiológicas, em que a demora entre a ação e a resposta coloca-se como intransponível. O próprio aparato dos óculos de realidade aumentada e dos fones de ouvido privilegia apenas a visão e a audição, deixando descobertos complexos espectros de sensação humana vinculados à realidade. Mais do que a imersividade Fei se interessa pelo poder que essas tecnologias podem deter de alterar dispositivos memoriais e psíquicos humanos.

Inteligência artificial e subjetividade
Fei se interessa também pelos efeitos da digitalização e de novos métodos de produção na subjetividade humana. Entende que a existência e a criação de cultura são atravessadas por esses vetores, enxergando novas formas de experimentar e compreender o mundo, que oscilam entre a razão e a alucinação. Há subjetividade na era digital? Quando feições são modeladas, avatares predeterminados são fornecidos para uso e a liberdade pessoal é cerceada pelos métodos produtivos, é viável pensar em subjetividade? Os discursos contrários à Inteligência Artificial são medos vãos? É possível inteligência sem subjetividade?
    Próximos a experimentos laboratoriais, testes de relações sociais são feitos pela artista no jogo Second Life, em busca de análises comportamentais. Nessas cidades criadas por ela, Fei discute o mundo digital como uma possibilidade de exílio, assim como se pôs o êxodo rural como escape das mazelas urbanas, em busca do bucolismo e do restabelecimento de conexões com a natureza. Essa ótica urbanística delirante é expressa em RBM City (2007), vídeo em que a artista demonstra modelos urbanos entrópicos pautados pelo capital – “RBM” vem de “renminbi”, moeda oficial da China – através de uma cidade criada no Second Life. Vale lembrar que o distanciamento dos convívios sociais e um afundamento no mundo digital foram intensificados durante a pandemia de Covid-19, em que a restrição dos contatos e dos encontros físicos era encorajada. Além dos impactos pandêmicos, a China é um dos países asiáticos que apresentam gráficos decrescentes quanto à atividade das vidas sociais e sexuais de sua população jovem.

Pós-socialismo e autoritarismo
As visões modernas da criação de um novo mundo foram amplamente difundidas por ideais comunistas: reitera-se a compreensão marxista de que a história humana é uma contínua metamorfose da natureza humana. Tornam-se mais claras, portanto, as relações entre países comunistas e proposições utópicas, que desencadeiam em sonhos de uma humanidade remodelada – como a teoria do “novo homem” – até importantes obras de ficção científica. A ocorrência de uma nova natureza como um reboot é tratada por Fei na série Nova (2019), em que grupos se armam com sabres de luz, pacientes de asilos utilizam óculos de realidade virtual e pessoas são a todo tempo banhadas com luzes néon rosa e verde.
    Em muitos trabalhos, a artista apresenta a influência da implantação de dinâmicas industriais em um rebote colonialista que advém da revolução técnico-científico-informacional, assim como dos mecanismos de controle sociais impostos pelo governo chinês para atender à velocidade das mudanças geopolíticas contemporâneas. No vídeo Shadow Life (2011), Fei alude às tradições de fantoches de sombras e aos festivais comunistas durante o governo de Mao Tsé-tung. As mãos, que mimetizam em seus personagens animais, árvores, templos, tratores e pessoas, são centrais para o trabalho operário manual industrial e camponês.

Texto originalmente publicado na seLecT_ceLesTe, em 27 de dezembro de 2023