Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.
Relembre-se de quando conversamos sobre o nosso reencontro
Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe na seção Portfólio sobre obras recentes da artista
WEB (pt)
Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe na seção Portfólio sobre obras recentes da artista
WEB (pt)
Presente na 35a. Bienal de São Paulo, Castiel Vitorino Brasileiro extrapola limites corpóres impostos pela historiografia e concentra-se na cura pela transmutação
Castiel Vitorino atém-se à imensurabilidade como propriedade final de resistência. O embate principal é com epistemologias categorizantes que isolam, iludem e aprisionam expressões e histórias manifestadas por pessoas postas à margem pela configuração e aparência de seus corpos. A artista, escritora e psicóloga clínica nasceu na comunidade Fonte Grande, em Vitória, no Espírito Santo, região marcada por aquilombolamentos, desde o século 16, formados por seus ancestrais, onde se criou a primeira escola de samba do estado e onde Castiel se ligou desde a infância com a capoeira e a banda de congo.
Convidada para integrar o corpo de artistas da 35ª Bienal de São Paulo, inaugurada no dia 6/9, Castiel Vitorino busca por tempos e espaços de liberdade entrelaçados que desafiam a lógica da permanência, em dança perpétua com a ontologia bantu. A artista sugere que o ato de (se) ampliar infinitamente promove não somente a dissolução de barreiras limitantes à existência, que não comportam a inevitabilidade da transmutação, mas incentiva a espiritualização do próprio corpo, efêmero na mesma medida em que é eterno.
Corporificar feminilidades
Corpoflor é uma série desenvolvida desde 2016, apresentada principalmente por meio de fotografias. Nela, expõe a mutabilidade do corpo com pinturas corporais, indumentárias, gestos e expressões faciais que possibilitam incorporar outras entidades do porvir, e reiteram sua própria personalidade de forma mutável e expandida. Através da transposição do próprio corpo para a botânica, amalgamando hierarquias díspares que se impõem como subordinadas pela linearidade, pode corporificar feminilidades de forma livre e irrestrita. A flor, portanto, é agente dinâmico, em constantes absorção e excreção de fluidos, substâncias e elementos que almejam o equilíbrio, a cura e a expansão.
Pela capacidade ininterrupta de limpeza, proteção e purificação dos corpos-flores, Castiel transborda limites artificiais atribuídos à condição humana, questionando, por exemplo, normas binárias de gênero e cor. A série desdobra-se em textos que, embora transdisciplinares, se aproximam da teoria da psicologia clínica. Como uma raiz de planta que arrebenta o concreto da calçada, Castiel Vitorino infiltra ontologias transbordantes no duro terreno acadêmico cientificista: tornou-se mestra em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a dissertação Tornar-se Imensurável: O Mito Negro Brasileiro e as Estéticas Macumbeiras na Clínica da Efemeridade.
Cura
Tema constante nos trabalhos de Castiel é a cura do que macula os corpos e os seres. No filme Quarto de Cura (2018), a artista relata que lhe foi ensinado, durante a sua graduação em psicologia, que a cura não existe e que só desaprendeu de fato quando sobreviveu a um pensamento suicida em 2017. Reconectou-se, dessa forma, com práticas familiares ancestrais que afirmam cura, produzindo sobrevivência de modo contrário ao autorizado pelas normatizações médicas capitalistas.
Em diversas obras, a artista cria o que chama de “situações estéticas-clínicas” ou “espaços perecíveis de liberdade”, em que subverte as forças do capitalismo que põem os corpos sempre em trabalho, virando do avesso a vida privada e veiculando a intimidade como produto, a todo instante ferida. Pensando de forma cíclica e ritualística, Castiel Vitorino dispõe o repouso e o resguardo como ferramentas macumbeiras de cura: só se faz uma entrega plena após um denso momento de preparo.
A história tem me exigido crueldade
Nos trabalhos da série A História Tem Me Exigido Crueldade, a artista brada que os atos de resistência de povos violentados – como a manutenção de ritos e a construção de amuletos – se dão por meio do combate, ao mesmo tempo que a irradiação da cura também é uma queda de contenda. Nos processos colonizatórios – ainda contemporâneos –, as noções de tempo, de corpo e de alma são forjadas segundo o privilégio do opressor. Ao escrever que a “transfobia é um resultado historiográfico”, em texto que integra a série Kalunga (2023), Castiel reitera que sua produção não se circunscreve apenas na expressão artística convencional, mas proporciona ferramentas de vida para a existência cotidiana e mecanismos teórico-científicos que combatam correntes hegemônicas. Com exímia escrita e produção teórica, Castiel Vitorino – que escreve diários há mais de 15 anos e publicou recentemente o livro Quando o Sol Aqui Não Mais Brilhar: A Falência da Negritude (n-1 edições, 2022) – incorpora a reflexão escrita de modo incontornável na sua prática em direção a sistemas de pensamentos orgânicos e abertos.
Sobre as colonizações de corpos e mentes, a artista argumenta em entrevista à seLecT_ceLesTe: “O tempo que tem sido forjado com a modernidade – com a psicanálise, com o darwinismo social – é um tempo que se constrói a partir de uma crença de que algumas pessoas não têm alma. A humanidade já passou por diversos processos de colonização, mas esse específico que inicia o capitalismo, que nomeamos de modernidade, nasce com a prerrogativa de que algumas pessoas são descontroladas; que algumas têm almas de criança, precisam ser ensinadas e catequizadas; e que outras são adultos que nunca vão ter alma, essas pessoas escuras que vivem em um lugar amaldiçoado pelo descontrole”.
Revisão sobre as origens
Kalunga: A Origem das Espécies é projeto visitante e peregrino. Foi iniciado por Castiel na Ilha de Vitória, no Espírito Santo, em templo que a artista construiu no Morro da Fonte Grande; assim como foi iniciado no Marrocos e em diversos lugares futuros que a artista visitará em permanente transmutação. O título do projeto atesta uma proposta de revisão sobre as origens de vida assentes na teoria darwinista (desembocada no darwinismo social), na psicanálise freudiana centrada na falta e na histeria, e em deturpações sobre a história de Jesus Cristo. Em épocas reinflamadas por epistemicídios, a artista defende a pluralidade e o respeito mútuo: “Nos povos bantu, nós conseguimos dizer sobre a nossa origem sem eliminar a origem do outro, convivendo com origens contanto que não exterminem as nossas tradições, em um convite para conversar”, diz.
Nos sistemas de vida bantu, Kalunga é a divindade relacionada à criação e aos fenômenos naturais. Em outros grupos próximos de Angola, Kalunga também é intitulada como Zambi, sem representação material ou altar próprio. Desse modo, sua invocação acontece diretamente nos elementos puros em situação de manifestação viva: em torno de fogueiras, no leito de cursos e corpos d’água, no solo de matas. A série gera, como resultados e forças ignitoras, desenhos, pinturas e performances-rituais registrados em fotografia e vídeo. Castiel Vitorino, ao investigar a origem das espécies, também analisa seu fim: não no sentido catastrófico e destrutivo, mas no entendimento de que andam juntos vida e morte, passado e futuro, início e fim, claridade e escuridão, existência e inexistência. Abrem-se, desse modo, entendimentos de futuro como vivência plena e intrínseca da ancestralidade, da qual o porvir é indissociável. Matriarcas e divindades, portanto, são guias pontuadas no passado, ancoradas no futuro.
Enquanto as noções de cura no Ocidente imbuído pelo cristianismo são voltadas para a limpeza de aspectos demonizados, como o prazer feminino, a cura através do prisma bantu-brasileiro de Castiel Vitorino enfoca na continuação do amor, da aceitação, da mudança, do orgasmo e da transexualidade. A proibição do gozo foi ensinada como dispositivo escravizador de almas. Os rituais, portanto, têm como cerne o “mistério da transmutação a partir da metamorfose de nossas almas e de nossa carne e de nossos sangues… o mundo ocidental nomeia essa lembrança de transexualidade”, escreve a artista em texto do projeto, que localiza no orgasmo um caminho de aceitação, em honra “às que reposicionaram seus órgãos e os retiraram quando lhes foi preciso”.
Nota
O título do portfólio, ‘Relembre-se de quando conversamos sobre o nosso reencontro’ é uma citação ao título da exposição da artista na galeria Mendes Wood DM, em Nova York, em 2022, curada por Germano Dushá.
Texto originalmente publicado na seLecT_ceLesTe, em 19 de setembro de 2023
Castiel Vitorino atém-se à imensurabilidade como propriedade final de resistência. O embate principal é com epistemologias categorizantes que isolam, iludem e aprisionam expressões e histórias manifestadas por pessoas postas à margem pela configuração e aparência de seus corpos. A artista, escritora e psicóloga clínica nasceu na comunidade Fonte Grande, em Vitória, no Espírito Santo, região marcada por aquilombolamentos, desde o século 16, formados por seus ancestrais, onde se criou a primeira escola de samba do estado e onde Castiel se ligou desde a infância com a capoeira e a banda de congo.
Convidada para integrar o corpo de artistas da 35ª Bienal de São Paulo, inaugurada no dia 6/9, Castiel Vitorino busca por tempos e espaços de liberdade entrelaçados que desafiam a lógica da permanência, em dança perpétua com a ontologia bantu. A artista sugere que o ato de (se) ampliar infinitamente promove não somente a dissolução de barreiras limitantes à existência, que não comportam a inevitabilidade da transmutação, mas incentiva a espiritualização do próprio corpo, efêmero na mesma medida em que é eterno.
Corporificar feminilidades
Corpoflor é uma série desenvolvida desde 2016, apresentada principalmente por meio de fotografias. Nela, expõe a mutabilidade do corpo com pinturas corporais, indumentárias, gestos e expressões faciais que possibilitam incorporar outras entidades do porvir, e reiteram sua própria personalidade de forma mutável e expandida. Através da transposição do próprio corpo para a botânica, amalgamando hierarquias díspares que se impõem como subordinadas pela linearidade, pode corporificar feminilidades de forma livre e irrestrita. A flor, portanto, é agente dinâmico, em constantes absorção e excreção de fluidos, substâncias e elementos que almejam o equilíbrio, a cura e a expansão.
Pela capacidade ininterrupta de limpeza, proteção e purificação dos corpos-flores, Castiel transborda limites artificiais atribuídos à condição humana, questionando, por exemplo, normas binárias de gênero e cor. A série desdobra-se em textos que, embora transdisciplinares, se aproximam da teoria da psicologia clínica. Como uma raiz de planta que arrebenta o concreto da calçada, Castiel Vitorino infiltra ontologias transbordantes no duro terreno acadêmico cientificista: tornou-se mestra em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a dissertação Tornar-se Imensurável: O Mito Negro Brasileiro e as Estéticas Macumbeiras na Clínica da Efemeridade.
Cura
Tema constante nos trabalhos de Castiel é a cura do que macula os corpos e os seres. No filme Quarto de Cura (2018), a artista relata que lhe foi ensinado, durante a sua graduação em psicologia, que a cura não existe e que só desaprendeu de fato quando sobreviveu a um pensamento suicida em 2017. Reconectou-se, dessa forma, com práticas familiares ancestrais que afirmam cura, produzindo sobrevivência de modo contrário ao autorizado pelas normatizações médicas capitalistas.
Em diversas obras, a artista cria o que chama de “situações estéticas-clínicas” ou “espaços perecíveis de liberdade”, em que subverte as forças do capitalismo que põem os corpos sempre em trabalho, virando do avesso a vida privada e veiculando a intimidade como produto, a todo instante ferida. Pensando de forma cíclica e ritualística, Castiel Vitorino dispõe o repouso e o resguardo como ferramentas macumbeiras de cura: só se faz uma entrega plena após um denso momento de preparo.
A história tem me exigido crueldade
Nos trabalhos da série A História Tem Me Exigido Crueldade, a artista brada que os atos de resistência de povos violentados – como a manutenção de ritos e a construção de amuletos – se dão por meio do combate, ao mesmo tempo que a irradiação da cura também é uma queda de contenda. Nos processos colonizatórios – ainda contemporâneos –, as noções de tempo, de corpo e de alma são forjadas segundo o privilégio do opressor. Ao escrever que a “transfobia é um resultado historiográfico”, em texto que integra a série Kalunga (2023), Castiel reitera que sua produção não se circunscreve apenas na expressão artística convencional, mas proporciona ferramentas de vida para a existência cotidiana e mecanismos teórico-científicos que combatam correntes hegemônicas. Com exímia escrita e produção teórica, Castiel Vitorino – que escreve diários há mais de 15 anos e publicou recentemente o livro Quando o Sol Aqui Não Mais Brilhar: A Falência da Negritude (n-1 edições, 2022) – incorpora a reflexão escrita de modo incontornável na sua prática em direção a sistemas de pensamentos orgânicos e abertos.
Sobre as colonizações de corpos e mentes, a artista argumenta em entrevista à seLecT_ceLesTe: “O tempo que tem sido forjado com a modernidade – com a psicanálise, com o darwinismo social – é um tempo que se constrói a partir de uma crença de que algumas pessoas não têm alma. A humanidade já passou por diversos processos de colonização, mas esse específico que inicia o capitalismo, que nomeamos de modernidade, nasce com a prerrogativa de que algumas pessoas são descontroladas; que algumas têm almas de criança, precisam ser ensinadas e catequizadas; e que outras são adultos que nunca vão ter alma, essas pessoas escuras que vivem em um lugar amaldiçoado pelo descontrole”.
Revisão sobre as origens
Kalunga: A Origem das Espécies é projeto visitante e peregrino. Foi iniciado por Castiel na Ilha de Vitória, no Espírito Santo, em templo que a artista construiu no Morro da Fonte Grande; assim como foi iniciado no Marrocos e em diversos lugares futuros que a artista visitará em permanente transmutação. O título do projeto atesta uma proposta de revisão sobre as origens de vida assentes na teoria darwinista (desembocada no darwinismo social), na psicanálise freudiana centrada na falta e na histeria, e em deturpações sobre a história de Jesus Cristo. Em épocas reinflamadas por epistemicídios, a artista defende a pluralidade e o respeito mútuo: “Nos povos bantu, nós conseguimos dizer sobre a nossa origem sem eliminar a origem do outro, convivendo com origens contanto que não exterminem as nossas tradições, em um convite para conversar”, diz.
Nos sistemas de vida bantu, Kalunga é a divindade relacionada à criação e aos fenômenos naturais. Em outros grupos próximos de Angola, Kalunga também é intitulada como Zambi, sem representação material ou altar próprio. Desse modo, sua invocação acontece diretamente nos elementos puros em situação de manifestação viva: em torno de fogueiras, no leito de cursos e corpos d’água, no solo de matas. A série gera, como resultados e forças ignitoras, desenhos, pinturas e performances-rituais registrados em fotografia e vídeo. Castiel Vitorino, ao investigar a origem das espécies, também analisa seu fim: não no sentido catastrófico e destrutivo, mas no entendimento de que andam juntos vida e morte, passado e futuro, início e fim, claridade e escuridão, existência e inexistência. Abrem-se, desse modo, entendimentos de futuro como vivência plena e intrínseca da ancestralidade, da qual o porvir é indissociável. Matriarcas e divindades, portanto, são guias pontuadas no passado, ancoradas no futuro.
Enquanto as noções de cura no Ocidente imbuído pelo cristianismo são voltadas para a limpeza de aspectos demonizados, como o prazer feminino, a cura através do prisma bantu-brasileiro de Castiel Vitorino enfoca na continuação do amor, da aceitação, da mudança, do orgasmo e da transexualidade. A proibição do gozo foi ensinada como dispositivo escravizador de almas. Os rituais, portanto, têm como cerne o “mistério da transmutação a partir da metamorfose de nossas almas e de nossa carne e de nossos sangues… o mundo ocidental nomeia essa lembrança de transexualidade”, escreve a artista em texto do projeto, que localiza no orgasmo um caminho de aceitação, em honra “às que reposicionaram seus órgãos e os retiraram quando lhes foi preciso”.
Nota
O título do portfólio, ‘Relembre-se de quando conversamos sobre o nosso reencontro’ é uma citação ao título da exposição da artista na galeria Mendes Wood DM, em Nova York, em 2022, curada por Germano Dushá.
Texto originalmente publicado na seLecT_ceLesTe, em 19 de setembro de 2023
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Corpoflor, 2022.
Castiel Vitorino Brasileiro, Amuletos, da série A história tem me exigido crueldade, 2018-2019.
Castiel Vitorino Brasileiro, Hibisco, 2019.
Castiel Vitorino Brasileiro, Corpo riscado, 2020.
Castiel Vitorino Brasileiro, sem título, da série Quando o segredo é revelado, o mistério não é roubado, 2021.
Castiel Vitorino Brasileiro, Quarto de cura (Morro da Fonte Grande), 2018-2019.