Emmanuel Nassar, EN2023, vistas da exposição, 2023. Fotos de Ana Pigosso.
A armadilha da retrospectiva
Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe sobre exposição individual do artista
WEB
Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe sobre exposição individual do artista
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Com mais de quatro décadas de produção, Emmanuel Nassar demonstra síntese e assertividade em exposição individual em moldes de retrospectiva em São Paulo
“Para um artista com mais de 70, toda mostra é uma retrospectiva”, defende o paraense Emmanuel Nassar. Poderíamos dizer também que toda exposição é uma armadilha. A lógica do mercado instrui que há de se fazer algo novo e chamativo, embora condizente com uma marca já consagrada. Em EN2023, com texto crítico de Antonio Gonçalves Filho, na galeria Millan, Nassar responde bem a essa arapuca com trabalhos que caminham cada vez mais para a síntese e a coesão.
A exposição inicia com uma grande parede que começa no exterior da galeria e segue em seu espaço interno, coberta por chapas metálicas modulares pintadas ou colhidas por Nassar. Os binarismos viram piada: frente e verso; fixo e móvel; muito e pouco; canônico e banal. Esse último pêndulo Nassar balança de forma enfática: incisões de Lucio Fontana, equilíbrio de elementos metálicos de Alexander Calder, combustões viscerais de Alberto Burri, lamparinas de Giorgio Morandi e serras dentadas entre os chassis de Wesley Duke Lee — como em A zona, de 1964, em exposição em A coleção imaginária de Paulo Kuczynski, no Instituto Tomie Ohtake — coabitam versículos bíblicos em letreiros populares escritos à mão, peneiras de farinha de mandioca feitas nas feiras de Belém e bandeiras metálicas de anúncio de açaí.
Em Mondrien (2018), Nassar cruza vergalhões que tensionam placas de madeira contra a parede. Já em Alinhamento (2018), o artista utiliza do dispositivo da alavanca e do objet trouvé; e, em Lamparina (2019), brinca com o legado da arte cinética e do construtivismo. Nessas e em outras obras, os engenhos cognitivos de Nassar mostram-se apurados: leves desequilíbrios entre estruturas que deveriam ser estáveis, assim como a estabilidade de sistemas improváveis.
Como ilustração da inserção de Nassar em escopos mais abrangentes de atuação e pensamento, a Millan apresenta na sala ao lado a mostra A arte pop e sua segunda geração — com obras de Andy Warhol, Antônio Dias, Cláudio Tozzi, Geraldo de Barros, Peter Halley, Raymundo Collares, Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro e Wesley Duke Lee —, reiterando os vínculos da produção de Nassar fora de escoras de observação que enxergam apenas o regional.
Se o neoconcretismo desmontava a relação sujeito-método-objeto do concretismo purista, Nassar embaralha todas as instâncias em um neoneoconcretismo — duplo, propositalmente confuso e reiterador — repleto de sujeitos, métodos e objetos. De modo engenhoso por sua quase impossibilidade, apresenta trabalhos extremamente sintéticos, mesmo os imbuindo de experiências, sensações e aspectos culturais e idiossincráticos. Se Nassar fala sempre de si mesmo ou se os trabalhos se repetem, esse fenômeno se dá menos no âmbito de uma expressão purista – automática em uma crítica engessada –, mas muito mais no âmbito da percepção. Toda escrita em Nassar é uma leitura: os trabalhos, as soluções e os questionamentos se repetem porque reiteram uma perspectiva pessoal pela qual o artista lê/vê o mundo, e a partir disso o escreve, em circuitos que se retroalimentam – isso se desdobra, inclusive, na reinserção de objetos descartados em um patamar de valor.
Nassar projeta sempre em retrospectiva, reafirmando que sistemas de pensamento baseados na categorização e na segregação já entraram em pane – pouco importa o nome do que faz, se é arte, contabilidade ou propaganda. Há muito já se sabe que modos de pensamento mais largos e sustentáveis se abastecem de epistemologias mais próximas às dos povos originários, transmitidos mesmo que de forma diluída às pessoas nascidas e crescidas em núcleos urbanos na Amazônia. Não é novo, mas vale repetir: os trabalhos de Nassar reapontam o norte.
No âmbito político, seus trabalhos reiteram a obsolescência da “visualidade amazônica”, proposta de leitura conceitual de críticos de arte sudestinos nas décadas de 1980 e 1990 que restringem as produções de artistas da região a recortes cartográficos — portanto artificiais e arbitrários — ou a respostas irrefletidas a manifestações vernáculas de cultura visual, magnitudes ecológicas ou narrativas mitológicas. A subjetividade de cada artista, a formação de seu senso crítico e a sua conexão com redes mais amplas são neutralizadas por leituras fetichizadas e alegóricas amontoadas em temas generalistas.
Sobre estruturas flácidas, alguns curadores sudestinos perpetuam, em uma manutenção colonialista, noções de incapacidade do desenvolvimento de consciência crítica e individual de pessoas vindas da Amazônia — que só responderiam, teoricamente, a questões naturais, sagradas e sociais; incapazes de refletir sobre temas como a imagem, a contemporaneidade, a história, a visões ecológicas através de outras epistemologias e a tecnologia, como bem o faz Nassar. As obras exibidas frisam que a produção artística amazônica deve ser lida em redes de conexão ampliadas, analisando cuidadosamente seus hibridismos culturais em contexto global, ao mesmo tempo que respeitam suas particularidades locais.
Texto originalmente publicado na seLecT_seLecT, em 2 de agosto de 2023
“Para um artista com mais de 70, toda mostra é uma retrospectiva”, defende o paraense Emmanuel Nassar. Poderíamos dizer também que toda exposição é uma armadilha. A lógica do mercado instrui que há de se fazer algo novo e chamativo, embora condizente com uma marca já consagrada. Em EN2023, com texto crítico de Antonio Gonçalves Filho, na galeria Millan, Nassar responde bem a essa arapuca com trabalhos que caminham cada vez mais para a síntese e a coesão.
A exposição inicia com uma grande parede que começa no exterior da galeria e segue em seu espaço interno, coberta por chapas metálicas modulares pintadas ou colhidas por Nassar. Os binarismos viram piada: frente e verso; fixo e móvel; muito e pouco; canônico e banal. Esse último pêndulo Nassar balança de forma enfática: incisões de Lucio Fontana, equilíbrio de elementos metálicos de Alexander Calder, combustões viscerais de Alberto Burri, lamparinas de Giorgio Morandi e serras dentadas entre os chassis de Wesley Duke Lee — como em A zona, de 1964, em exposição em A coleção imaginária de Paulo Kuczynski, no Instituto Tomie Ohtake — coabitam versículos bíblicos em letreiros populares escritos à mão, peneiras de farinha de mandioca feitas nas feiras de Belém e bandeiras metálicas de anúncio de açaí.
Em Mondrien (2018), Nassar cruza vergalhões que tensionam placas de madeira contra a parede. Já em Alinhamento (2018), o artista utiliza do dispositivo da alavanca e do objet trouvé; e, em Lamparina (2019), brinca com o legado da arte cinética e do construtivismo. Nessas e em outras obras, os engenhos cognitivos de Nassar mostram-se apurados: leves desequilíbrios entre estruturas que deveriam ser estáveis, assim como a estabilidade de sistemas improváveis.
Como ilustração da inserção de Nassar em escopos mais abrangentes de atuação e pensamento, a Millan apresenta na sala ao lado a mostra A arte pop e sua segunda geração — com obras de Andy Warhol, Antônio Dias, Cláudio Tozzi, Geraldo de Barros, Peter Halley, Raymundo Collares, Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro e Wesley Duke Lee —, reiterando os vínculos da produção de Nassar fora de escoras de observação que enxergam apenas o regional.
Se o neoconcretismo desmontava a relação sujeito-método-objeto do concretismo purista, Nassar embaralha todas as instâncias em um neoneoconcretismo — duplo, propositalmente confuso e reiterador — repleto de sujeitos, métodos e objetos. De modo engenhoso por sua quase impossibilidade, apresenta trabalhos extremamente sintéticos, mesmo os imbuindo de experiências, sensações e aspectos culturais e idiossincráticos. Se Nassar fala sempre de si mesmo ou se os trabalhos se repetem, esse fenômeno se dá menos no âmbito de uma expressão purista – automática em uma crítica engessada –, mas muito mais no âmbito da percepção. Toda escrita em Nassar é uma leitura: os trabalhos, as soluções e os questionamentos se repetem porque reiteram uma perspectiva pessoal pela qual o artista lê/vê o mundo, e a partir disso o escreve, em circuitos que se retroalimentam – isso se desdobra, inclusive, na reinserção de objetos descartados em um patamar de valor.
Nassar projeta sempre em retrospectiva, reafirmando que sistemas de pensamento baseados na categorização e na segregação já entraram em pane – pouco importa o nome do que faz, se é arte, contabilidade ou propaganda. Há muito já se sabe que modos de pensamento mais largos e sustentáveis se abastecem de epistemologias mais próximas às dos povos originários, transmitidos mesmo que de forma diluída às pessoas nascidas e crescidas em núcleos urbanos na Amazônia. Não é novo, mas vale repetir: os trabalhos de Nassar reapontam o norte.
No âmbito político, seus trabalhos reiteram a obsolescência da “visualidade amazônica”, proposta de leitura conceitual de críticos de arte sudestinos nas décadas de 1980 e 1990 que restringem as produções de artistas da região a recortes cartográficos — portanto artificiais e arbitrários — ou a respostas irrefletidas a manifestações vernáculas de cultura visual, magnitudes ecológicas ou narrativas mitológicas. A subjetividade de cada artista, a formação de seu senso crítico e a sua conexão com redes mais amplas são neutralizadas por leituras fetichizadas e alegóricas amontoadas em temas generalistas.
Sobre estruturas flácidas, alguns curadores sudestinos perpetuam, em uma manutenção colonialista, noções de incapacidade do desenvolvimento de consciência crítica e individual de pessoas vindas da Amazônia — que só responderiam, teoricamente, a questões naturais, sagradas e sociais; incapazes de refletir sobre temas como a imagem, a contemporaneidade, a história, a visões ecológicas através de outras epistemologias e a tecnologia, como bem o faz Nassar. As obras exibidas frisam que a produção artística amazônica deve ser lida em redes de conexão ampliadas, analisando cuidadosamente seus hibridismos culturais em contexto global, ao mesmo tempo que respeitam suas particularidades locais.
Texto originalmente publicado na seLecT_seLecT, em 2 de agosto de 2023
Emmanuel Nassar, Mondrien, 2018.
Emmanuel Nassar, Lamparina, 2019.
Emmanuel Nassar, Alinhamento, 2018.
Emmanuel Nassar, EN2023, vistas da exposição, 2023.