Emmanuel Nassar, TrapiocaBox, 2021.
Emmanuel Nassar, ou Como vender tapioca
Texto crítico publicado na revista seLecT sobre trabalhos recentes da série Trapioca, de Emmanuel Nassar
WEB
Versão expandida (com Agnaldo Farias)
Texto crítico publicado na revista seLecT sobre trabalhos recentes da série Trapioca, de Emmanuel Nassar
WEB
Versão expandida (com Agnaldo Farias)
Operação estética do artista paraense desnuda os balangandãs entrópicos mercadológicos e faz a venda da obra de arte retornar a seu cerne principal de troca
Diversos fatores somam-se para um norteamento de leituras sobre o trabalho de Nassar. Desde marcos intrinsecamente artísticos, como a satirização de um cânone geométrico e cromático purista já aplaudido, até a exaustiva manipulação do traço erudito que se transveste como ingênuo. A plena atenção aos movimentos artísticos contemporâneos enrobustece o artista que maquina suas narrativas, à sombra de uma periferia da modernidade que cobre a Amazônia – mas que, no caso de Nassar, não o assola, mas o protege. Esse distanciamento faz com que o artista observe com olhos atentos as movimentações alheias, os complexos e tecnológicos aparatos utilizados, interpretando seus funcionamentos de uma perspectiva própria.
Como se aprende a partir das máscaras indígenas do Xingu e das técnicas ilusionistas do barroco italiano: enganar é trabalho muito difícil. A cena é posta, a narrativa é construída, e cada obra, independentemente da plataforma, é um fragmento memorial e imagético que se tem ao se encantar com o espetáculo. Desde o início, porém, Nassar já anuncia e alerta o espectador que está à entrada do seu mundo fantasioso e ilusório: não há o engano tacanho e desavisado. As questões éticas aí estão resolvidas: as mãos lavadas, a língua dita e os olhos prontos.
E é da mesma forma que Nassar compreende o mercado de arte na contemporaneidade. Inserido no sistema, o artista não mais se detém nas querelas críticas da incompreensão artística pelo mercado, num luto do incompreendido rendido às dinâmicas capitalistas, mas pula no barco, entendendo que seu conceito artístico é lido – e também vendido e consumido – como uma marca. Os alinhamentos com uma arte pop são não somente inevitáveis, mas intencionais, e as questões mercadológicas não apenas orbitam o trabalho de Nassar, como estruturam seu conceito.
O artista sabe que o mercado de arte ultrapassa as dinâmicas de subsistência, da visceralidade e da fisiologia humanas, e habita o campo do presentear: com o fragmento imagético, presenteia-se a si mesmo ou ao outro. Talvez essa clareza de intenções e a negação de uma demagogia sobre o capital façam com que, nesse caso muito específico, se desnudem os balangandãs entrópicos mercadológicos e a venda da obra de arte retorne a seu cerne principal de troca. Para Nassar, o ato da venda é um momento mágico que conecta dois sonhadores: o que sonha em ter uma lembrança dessa narrativa consigo, e o que almeja pulverizar seu conceito no universo. Ficcional e fabuloso na mesma ordem de grandeza do ato de dar valor material a algo tão arbitrário e volátil. A obtenção desse fetiche sana, ao menos temporariamente, o desejo de possuí-lo.
Para Roland Barthes, “todo objeto tocado pelo corpo do amado se torna parte daquele corpo, e o sujeito avidamente se une a ele”. Dessa forma, os objetos produzidos e pintados por Nassar, como as serras, os pregos, as empenas e os arames, intuitivamente tão duros e distantes do toque afável do afeto, são fetichizados por terem sido submetidos ao seu toque. São, portanto, parte de si: lembranças de um toque.
Nassar detém um interesse especial pelos funcionamentos simples, pela genialidade humana condensada em dinâmicas precisas, como o toque e a troca. Tal fascínio é amplamente expresso nas obras do artista, que cria empenas, trancas, alavancas, roldanas, sistemas instáveis e estáveis à luz de uma estética regionalista e de uma lógica da gambiarra. Nassar se debruça sobre o engenho humano: tanto no aspecto maquínico, quanto no intelectual.
Essas dinâmicas são apenas ferramentas para fenômenos mais complexos, como, no caso do toque, a instituição da obra de arte como parte de um conceito, que transfere valores à matéria quando é tocada pelo artista; no caso da troca, o mercado contemporâneo de arte, o ato da venda e os aparelhos propagandísticos utilizados para que ela aconteça.
A nova série de objetos produzidos por Nassar, feitos a partir de bancas de venda de tapioca, interessa pelas mesmas dinâmicas. Quanto ao toque, flertam com princípios do ready-made, apresentando o objeto cotidiano reconhecível como elemento principal da obra, mas alterado a partir de precisas operações do artista. Importante, portanto, que essas bancas não tenham sido feitas para a aplicação artística, mas para o uso cotidiano. Aí, então, entra a dinâmica da troca: Nassar as adquire de vendedores locais de tapioca na Praça da República, no centro de Belém, com preço definido pelo próprio tapioqueiro. Em um dos casos, temeroso de não reencontrar o vendedor que lhehavia prometido vender a banca assim que terminasse a venda das tapiocas, Nassar comprou-as todas e, com a ajuda do tapioqueiro, as distribuiu para quem estava na praça. Há tempos a Praça da República não via algo mesmo republicano.
Os vínculos com a arte pop contemporânea e os princípios do ready-made seguem no título da obra: TrapiocaBox. Nassar se aproxima de Brillo Box (Soap Pads) (1964), de Andy Warhol, em uma identificação do consumo local, particular da Amazônia. Regionaliza o objeto, saindo da escala industrial dos sabões em pó estadunidenses a que Warhol se remete, partindo para um consumo artesanal de tapiocas, produzidas de forma caseira e ancestral, em que nem as embalagens nem os produtos seguem um padrão estandardizado. Além disso, referir-se à palavra “trap”, em inglês, “armadilha” em português, que alude ao mecanismo de prender e de fechar, também se conecta a outras obras do artista, como Trap Trap (2006) e Trapescale (2014). Os dispositivos de engano, de armadilha e de ilusão, recorrentes na obra de Nassar, se repetem e se direcionam, de um modo crítico – de certa forma satírica e bem-humorada –, à historiografia de arte contemporânea.
As bancas de tapioca, caixas de madeira pintadas de branco, com “tapioca” escrito nas laterais de forma anunciativa, são originalmente postos num cavalete dobrável do mesmo material, com o mesmo acabamento. Os dois elementos principais têm sua materialidade centrada em suas dinâmicas: os cavaletes são dobráveis, elementos que abrem e fecham para o fácil transporte; enquanto a banca que armazena as tapiocas a serem vendidas tem uma tampa afixada com dobradiças metálicas, que abre e fecha facilmente. Essa tampa, com moldura de madeira, tem uma grande tela de arame, que permite que os clientes vejam o produto que desejam – ou passem a desejá-lo justamente ao vê-lo – e o protege de moscas indesejadas no clima tropical. Puro engenho.
Nassar desnuda as bancas de tapioca de suas telas metálicas e, numa delas, aplica a silhueta do território brasileiro no centro, recortada em chapa metálica branca. As leituras podem ser as mais diversas: desde a sugestão de uma tapioca com o formato do Brasil, quanto uma metonímia de que o país é feito do alimento mais brasileiro de todos, a mandioca, matéria-prima da tapioca. Engenhosamente, o artista utiliza o mecanismo das dobradiças da peça como um dos protagonistas do trabalho, havendo a possibilidade de a tampa ser aberta, configurando um díptico.
O tabuleiro torna-se uma espécie de cartografia, quando, além da representação do território, o artista pinta suas iniciais, “EN”, uma oposta à outra. Essa banca de tapioca não desnorteia o espectador, ao apresentar incongruências do leste e do norte como elementos aqui colineares, mas o norteia, no sentido de o imbuir da cultura e da visualidade do norte do Brasil. Puro engenho, pura troca: como vender tapioca.
Texto originalmente publicado na seLecT, em 4 de fevereiro de 2022
Diversos fatores somam-se para um norteamento de leituras sobre o trabalho de Nassar. Desde marcos intrinsecamente artísticos, como a satirização de um cânone geométrico e cromático purista já aplaudido, até a exaustiva manipulação do traço erudito que se transveste como ingênuo. A plena atenção aos movimentos artísticos contemporâneos enrobustece o artista que maquina suas narrativas, à sombra de uma periferia da modernidade que cobre a Amazônia – mas que, no caso de Nassar, não o assola, mas o protege. Esse distanciamento faz com que o artista observe com olhos atentos as movimentações alheias, os complexos e tecnológicos aparatos utilizados, interpretando seus funcionamentos de uma perspectiva própria.
Como se aprende a partir das máscaras indígenas do Xingu e das técnicas ilusionistas do barroco italiano: enganar é trabalho muito difícil. A cena é posta, a narrativa é construída, e cada obra, independentemente da plataforma, é um fragmento memorial e imagético que se tem ao se encantar com o espetáculo. Desde o início, porém, Nassar já anuncia e alerta o espectador que está à entrada do seu mundo fantasioso e ilusório: não há o engano tacanho e desavisado. As questões éticas aí estão resolvidas: as mãos lavadas, a língua dita e os olhos prontos.
E é da mesma forma que Nassar compreende o mercado de arte na contemporaneidade. Inserido no sistema, o artista não mais se detém nas querelas críticas da incompreensão artística pelo mercado, num luto do incompreendido rendido às dinâmicas capitalistas, mas pula no barco, entendendo que seu conceito artístico é lido – e também vendido e consumido – como uma marca. Os alinhamentos com uma arte pop são não somente inevitáveis, mas intencionais, e as questões mercadológicas não apenas orbitam o trabalho de Nassar, como estruturam seu conceito.
O artista sabe que o mercado de arte ultrapassa as dinâmicas de subsistência, da visceralidade e da fisiologia humanas, e habita o campo do presentear: com o fragmento imagético, presenteia-se a si mesmo ou ao outro. Talvez essa clareza de intenções e a negação de uma demagogia sobre o capital façam com que, nesse caso muito específico, se desnudem os balangandãs entrópicos mercadológicos e a venda da obra de arte retorne a seu cerne principal de troca. Para Nassar, o ato da venda é um momento mágico que conecta dois sonhadores: o que sonha em ter uma lembrança dessa narrativa consigo, e o que almeja pulverizar seu conceito no universo. Ficcional e fabuloso na mesma ordem de grandeza do ato de dar valor material a algo tão arbitrário e volátil. A obtenção desse fetiche sana, ao menos temporariamente, o desejo de possuí-lo.
Para Roland Barthes, “todo objeto tocado pelo corpo do amado se torna parte daquele corpo, e o sujeito avidamente se une a ele”. Dessa forma, os objetos produzidos e pintados por Nassar, como as serras, os pregos, as empenas e os arames, intuitivamente tão duros e distantes do toque afável do afeto, são fetichizados por terem sido submetidos ao seu toque. São, portanto, parte de si: lembranças de um toque.
Nassar detém um interesse especial pelos funcionamentos simples, pela genialidade humana condensada em dinâmicas precisas, como o toque e a troca. Tal fascínio é amplamente expresso nas obras do artista, que cria empenas, trancas, alavancas, roldanas, sistemas instáveis e estáveis à luz de uma estética regionalista e de uma lógica da gambiarra. Nassar se debruça sobre o engenho humano: tanto no aspecto maquínico, quanto no intelectual.
Essas dinâmicas são apenas ferramentas para fenômenos mais complexos, como, no caso do toque, a instituição da obra de arte como parte de um conceito, que transfere valores à matéria quando é tocada pelo artista; no caso da troca, o mercado contemporâneo de arte, o ato da venda e os aparelhos propagandísticos utilizados para que ela aconteça.
A nova série de objetos produzidos por Nassar, feitos a partir de bancas de venda de tapioca, interessa pelas mesmas dinâmicas. Quanto ao toque, flertam com princípios do ready-made, apresentando o objeto cotidiano reconhecível como elemento principal da obra, mas alterado a partir de precisas operações do artista. Importante, portanto, que essas bancas não tenham sido feitas para a aplicação artística, mas para o uso cotidiano. Aí, então, entra a dinâmica da troca: Nassar as adquire de vendedores locais de tapioca na Praça da República, no centro de Belém, com preço definido pelo próprio tapioqueiro. Em um dos casos, temeroso de não reencontrar o vendedor que lhehavia prometido vender a banca assim que terminasse a venda das tapiocas, Nassar comprou-as todas e, com a ajuda do tapioqueiro, as distribuiu para quem estava na praça. Há tempos a Praça da República não via algo mesmo republicano.
Os vínculos com a arte pop contemporânea e os princípios do ready-made seguem no título da obra: TrapiocaBox. Nassar se aproxima de Brillo Box (Soap Pads) (1964), de Andy Warhol, em uma identificação do consumo local, particular da Amazônia. Regionaliza o objeto, saindo da escala industrial dos sabões em pó estadunidenses a que Warhol se remete, partindo para um consumo artesanal de tapiocas, produzidas de forma caseira e ancestral, em que nem as embalagens nem os produtos seguem um padrão estandardizado. Além disso, referir-se à palavra “trap”, em inglês, “armadilha” em português, que alude ao mecanismo de prender e de fechar, também se conecta a outras obras do artista, como Trap Trap (2006) e Trapescale (2014). Os dispositivos de engano, de armadilha e de ilusão, recorrentes na obra de Nassar, se repetem e se direcionam, de um modo crítico – de certa forma satírica e bem-humorada –, à historiografia de arte contemporânea.
As bancas de tapioca, caixas de madeira pintadas de branco, com “tapioca” escrito nas laterais de forma anunciativa, são originalmente postos num cavalete dobrável do mesmo material, com o mesmo acabamento. Os dois elementos principais têm sua materialidade centrada em suas dinâmicas: os cavaletes são dobráveis, elementos que abrem e fecham para o fácil transporte; enquanto a banca que armazena as tapiocas a serem vendidas tem uma tampa afixada com dobradiças metálicas, que abre e fecha facilmente. Essa tampa, com moldura de madeira, tem uma grande tela de arame, que permite que os clientes vejam o produto que desejam – ou passem a desejá-lo justamente ao vê-lo – e o protege de moscas indesejadas no clima tropical. Puro engenho.
Nassar desnuda as bancas de tapioca de suas telas metálicas e, numa delas, aplica a silhueta do território brasileiro no centro, recortada em chapa metálica branca. As leituras podem ser as mais diversas: desde a sugestão de uma tapioca com o formato do Brasil, quanto uma metonímia de que o país é feito do alimento mais brasileiro de todos, a mandioca, matéria-prima da tapioca. Engenhosamente, o artista utiliza o mecanismo das dobradiças da peça como um dos protagonistas do trabalho, havendo a possibilidade de a tampa ser aberta, configurando um díptico.
O tabuleiro torna-se uma espécie de cartografia, quando, além da representação do território, o artista pinta suas iniciais, “EN”, uma oposta à outra. Essa banca de tapioca não desnorteia o espectador, ao apresentar incongruências do leste e do norte como elementos aqui colineares, mas o norteia, no sentido de o imbuir da cultura e da visualidade do norte do Brasil. Puro engenho, pura troca: como vender tapioca.
Texto originalmente publicado na seLecT, em 4 de fevereiro de 2022
Emmanuel Nassar, TrapiocaBox, 2021.
Emmanuel Nassar, TrapiocaLeg, 2021.
Emmanuel Nassar, Trapioca2em1, 2021.
Emmanuel Nassar, Trapioca2em1, 2021.
Andy Warhol, Brilo Box (Soap Pads), 1964. Acervo MoMA.