Esfíngico Frontal. Vista da exposição, Mendes Wood DM, São Paulo, 2023.
2023.    Esfíngico Frontal
Esfíngico Frontal

Texto crítico publicado na revista Flash Art sobre exposição coletiva na Mendes Wood DM, em São Paulo

WEB (original text, in English)



Ao observar expressões da solidão humana materializadas em formas esfíngicas, Esfíngico Frontal provê uma constelação de imagens que refletem como nós, humanos, somos assombrados por nossa própria existência - e, portanto, por nossa própria solidão. A exposição investiga como esse enigma complexo e duradouro pode interferir e guiar múltiplas produções artísticas, desde o período neolítico até a pintura do século 20 e a performance contemporânea, através de uma flexa não linear e temporalmente atravessante.
    Abordando vários sistemas de pensamento estruturados por humanos para sustentar suas próprias questões existenciais, Esfíngico Frontal demonstra como todos eles inevitavelmente atingem um ponto crítico em relação à individualidade. É como se todos os caminhos conduzissem a uma existência coletiva, e qualquer produção individual que tente forçosamente romper essa membrana resulta em uma expressão caótica. A exposição conduz uma leitura de diferentes repetições de um mesmo enigma, mas cada uma representada por meio de seus conceitos e visualidades individuais.
    Organizada e curada por Germano Dushá, a mostra apresenta cinquenta e nove obras de mais de quarenta e cinco artistas de todo o mundo, no amplo espaço da galeria Mendes Wood DM, em São Paulo. É o ponto culminante da crescente prática curatorial de Dushá nos últimos anos, alinhada aos esforços de internacionalização da galeria brasileira. Com sedes em São Paulo, Bruxelas e Nova York, a Mendes Wood anunciou recentemente a abertura de um novo espaço na Place des Vosges, em Paris, em julho de 2023.
    O primeiro espaço da exposição é composto por um altar feito com relíquias arqueológicas do quarto milênio antes de Cristo ao século 16 e uma pintura de paisagem de Lucas Arruda. Eles formam um arco que envolve o espectador como parte de um ritual: as peças arqueológicas, que irradiam o poder do tempo, são exibidas contrastantemente em pedestais de aço industrial e, onde se encontraria uma imagem figurativa ou alegórica clássica no meio desse santuário, o quadro de Arruda está pendurado na parede. Ao mesmo tempo que louva a natureza como um todo, em sua vasta paisagem, reafirma a pequenez humana, ideia também reiterada pelos gigantescos e enigmáticos arcos temporais que emanam das peças arqueológicas.


Nos espaços subsequentes, o convite ao olhar — com imagens e seres que quase dizem “olhe para mim” ou “voilà mon cœur” — se inverte, assim como a noção de influência unilateral foi deslocada pelos teóricos da imagem nos últimos tempos. Não somos influenciados passivamente por imagens, mas escolhemos ativamente operar o que nos influencia a partir do prato de oferendas servido por nossos contextos sociais [1]. A exposição prova que o olhar segue a mesma direção: não é direcionado por nós, não mais em nosso controle total—- ou nunca foi desde o começo —, mas algumas coisas o magnetizam sem nosso total consentimento, aplicando uma força tão forte que o olho se torna uma entidade passiva. É a imagem que conduz o olhar, e não o contrário — como em Sphinx (2020) de Zsófia Keresztes e na robusta escultura em chumbo sem título de Paulo Monteiro (1995).


A mostra evidencia que a civilização contemporânea ocidental, ao longo dos últimos séculos, tem medo de olhar para sua própria natureza. E, por vezes, o faz de forma tão hiperbólica que cria figuras hiper-realistas que apontam para a representação e não para as coisas em si [2], como em CLIMBER (Pierced Rosebud) de Anna Uddenberg (2022). Há também uma notável estética ciborgue em muitas das obras da exposição, como em Show me your nails (2022), de Franco Palioff, e Flor (Flower) (2022), de Samuel Guerrero. Em Desambiguação (2021), de Jonas Van, vemos gemas incrustadas em um molde ortodôntico que nos lembram que estamos acostumados com a imagem de dentes tortos sendo alinhados por uma máquina implantada em nossa boca, que exerce tração contra os ossos para fins estéticos — mas, talvez, se pensarmos bem, não nos sintamos totalmente à vontade com a ideia. Arranjos livres de corpos humanos, muitas vezes alinhados com princípios helenísticos de beleza, são lidos como estranhos se em posições bizarras, como nas fotografias de Joanna Piotrowska (2015) de pessoas que parecem estar possuídas.
    Por que estranhamos quando partes de outras espécies naturais se integram às nossas — como asas de morcego, como em XXI (2021), de Luiz Roque, ou em Transfusions (1995), de Lynn Randolph —, mas nem tanto quando se trata de coisas humanamente produzidas — como as asas de um anjo, assumindo que as imagens religiosas são expressas apenas por humanos, ou por máquinas que cuidam de sua saúde e beleza? Não só não nos incomoda, como até admiramos como esses aparelhos podem proporcionar momentos etéreos: o vídeo de Roque também mostra um casal dançando ao som de uma caixa de música com um deles em uma cadeira de rodas, expressando uma sensação de conexão afetiva, delicadeza e amor. Por que a ideia de transplantar uma veia de porco em um corpo humano é mais repugnante do que ter seu sangue totalmente filtrado por uma máquina de hemodiálise? Abrir um autômato e expor suas engrenagens pode ser análogo a dilacerar um corpo e revelar suas vísceras.


As tecnologias criadas pelo homem — no campo material, como a medicina, a física ou os mecanismos de produção, mas também sistemas de crenças e categorizações epistemológicas — nos fornecem um senso de controle que nos protege diante do desconhecido e do calor incontrolável do universo. Às vezes, se transpõe ao outro, mas muitas vezes é percebido em nós mesmos. Nossos dispositivos de compreensão e produção são criados para manter um senso de poder humano e controle sobre a natureza. A própria história é também uma tecnologia humana para domar imagens, narrativas e eventos, e as relações espelhadas entre essas entidades estão entrando em colapso — como ilustra Femme maison (bourgeois) (2023) de Paulo Nimer Pjota. Como escreve Dushá no texto curatorial, “a perda dessa referência tem sido dolorosa para a humanidade; o tempo é como quantificamos nossos apegos.” A humanidade não está pronta para sua própria perda de controle.


Mais adiante nesse nebuloso limiar entre cultura e natureza, uma das questões da exposição é se a solidão é inerente à existência humana, como função fisiológica da psique. Embora crie um argumento coeso sugerindo que é um aspecto visceral, a mostra também apresenta deliberadamente uma imagem espelhada que atesta o contrário: formas de organização natural que se estruturam a partir da coletividade — assim como alguns sistemas sociais são aniquilados pelo colonialismo — e que a individualização é um mal-estar cultural ocidental. A própria esfinge, como entidade cultural e religiosa original dos povos africanos, foi usurpada pela dinâmica da antiga dominação grega — assim como por um grande número de tradições e conceitos africanos que foram reelaborados e difundidos pela Grécia e Roma antigas como seus [3] — conquistando não apenas territórios, mas dominando pessoas e narrativas em uma supremacia branca e individualista.
    No presunçoso modo de pensar humano que domina a sociedade contemporânea, contemplar os limites do corpo humano ou do indivíduo envolve muitas vezes reduzir a natureza a uma mesma perspectiva limitada. Essa abordagem reflete uma visão de mundo individualista que abstrai os seres humanos das categorias naturais, colocando-os em uma posição de domínio sobre o meio ambiente. Cria uma ilusão de controle, como se os humanos fossem como entidades que podem manipular o tempo, as imagens e a narrativa à sua vontade. No entanto, as imagens distorcidas e angustiantes em Esfíngico Frontal revelam a solidão e a desconexão que resultam da falta de respostas, herdadas ou implantadas. Essas experiências compartilhadas nos lembram que estamos todos conectados por esse sentimento de incerteza existencial.


Notas
[1] Michael Baxandall, Patterns of Intention: On the Historical Explanation of Pictures. New Haven: Yale University Press, 1985, p. 58–59.
[2] Gilles Deleuze, The Fold: Leibniz and the Baroque. London: The Athlone Press, 1993, p. 115.
[3] Ludwig Koenen, “Greece, the Near East, and Egypt: Cyclic Destruction in Hesiod and the ‘Catalogue of Women,’” Transactions of the American Philological Association 124 (1994): p. 1–2, https://doi.org/10.2307/284283.



Texto originalmente publicado em inglês na Flash Art Magazine, em 3 de março de 2023



Todas as imagens são cortesia da galeria Mendes Wood DM, São Paulo, Bruxelas e Nova York.