Felipe Ferreira, Última tarde, vistas da exposição, 2023.
2023.    Felipe Ferreira
Última tarde

Curadoria da exposição individual do artista na Casa das Artes/Fundação Cultural do Pará, em Belém


07.06-28.07.2023
Galeria Ruy Meira, Casa das Artes, Fundação Cultural do Pará, Belém



“O chalé lhe pareceu o tempo morto, o museu das vozes mortas; abeirou-se do rio, este, sim, tão vivo, tão recém-nascido.” [1]

Dalcídio Jurandir, Primeira manhã, 1967


Em sua segunda exposição individual, Felipe Ferreira aprofunda suas relações com a pintura, a memória e o lugar. O artista sintetiza essas interseções em trabalhos que vão do detalhe arquitetônico — como números de casas, gradis e medidores elétricos — à amplidão dos céus na paisagem, passando por observações sistemáticas do movimento da luz solar no interior de um cômodo e fabulações de cidades sonhadas e metafísicas. Atritando sensos de cotidiano e maravilhamento, a introspecção de Ferreira é transposta na melancolia observadora de uma cidade onde pessoas não são retratadas, mas somente marcas de suas presenças. De todo modo, esses fragmentos pulsam a atmosfera de uma cidade vívida e das intrincadas histórias materializadas em suas imagens.
    Íntimo com o espaço urbano, Ferreira ultrapassa um saudosismo revivalista tradicional na pintura paraense da última geração, que ainda estende a imagem da cidade que Belém era – ou que seria, que nunca fora, que jamais pôde ser. Os protagonistas monumentais dão lugar a fragmentos arquitetônicos, atentivamente observados pelo artista e de ordem corriqueira, mas tornados especiais pela escuta ativa e pelas relações de pertencimento com o lugar. Mesmo quando esses ícones aparecem, estão discretos, em uma visão oblíqua, de costas, ou só com seu topo à mostra, engolfados por um céu que banha toda e qualquer cidade. O olhar acostumado os reconhece imediatamente, como se identifica alguém íntimo pelo som do andar.
    Na série de sombras, Ferreira se detém a pintar a insubordinação às grades de casa da luz natural – que, assim como a memória, não obedece a limites rígidos. Nesses trabalhos, é quase como se o artista não quisesse que a luz o tocasse, em uma contemplação absoluta do fenômeno natural incólume. Atravessante, a luz projeta sombras, efêmeras na medida em que são sólidas, pois quase nada variam durante os dias de uma cidade tão próxima à linha do Equador. O artista enumera as sombras que vê como estações de uma via crucis: ordenadas, seguem oscilações como se o dia estivesse respirando, em momentos diferentes dos pulmões inflados, alinhados aos do pintor. Cada respiração é diferente, mesmo que tão igual às outras — como o céu, a luz, a rua.
    Ainda em diálogo com uma história da pintura local, Ferreira caminha em contrafluxo com uma tradição da representação urbana belenense desde os frontispícios do século 17, feitos pelos viajantes exploradores. Esses, que objetivavam uma grafia fidedigna do território para domínio, uma precisão da linha costeira e de suas vulnerabilidades de defesa, são contornados por Ferreira quando opta por preconizar a atmosfera de estreita convivência com aquela paisagem. O artista pinta a igreja, o edifício e a torre como se coloca diante do horizonte: torna-os observadores, fadados – ou presenteados – a olhar o mesmo céu que o artista olha, na aurora e no crepúsculo, todo dia.
    Ferreira insiste nas noções de que Belém é só mais uma, mas que é a única; que serve como arquétipo para todos os lugares, enquanto enfatiza suas singularidades. Pinta os céus como se presenciasse a gênese da primeira manhã ou o encerrar da última tarde. No final, entre a ficção e a factualidade, acaba por pintar a Belém que é ou que seria, que sempre e nunca fora, que eternamente pôde e nunca pode ser.


Notas
[1] Jurandir, Dalcídio. Primeira manhã. São Paulo: Martins, 1967, p. 21-22.


Texto originalmente publicado na exposição “Última tarde” na galeria Ruy Meira, na Casa das Artes/Fundação Cultural do Pará, de 7 de junho a 28 de julho de 2023