Giselle Beiguelman, CoroNews, 2022.
A desinformação contagiosa

Texto crítico publicado na revista seLecT na seção Portfólio sobre obras recentes de Giselle Beiguelman

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Obras de Giselle Beiguelman escracham as similaridades entre a crise na informação, ataques computacionais de vírus e os efeitos pandêmicos

Giselle Beiguelman é uma das maiores pesquisadoras no panorama mundial sobre a intersecção entre arte, tecnologia e informação. Além de sólida produção acadêmica e editorial, Beiguelman compõe uma produção artística contundente e crítica, sobretudo em plataformas digitais.
    Em 2021, durante o pico da pandemia do corona vírus, Beiguelman desenvolveu dois indagadores trabalhos sobre o tema: o vídeo CoroNews e o livro de artista CoroNews: Tou Va Vou. Os dois trabalhos se conectam principalmente em dois aspectos: por semelhança, por terem a mesma matriz geracional a partir embaralhamento de códigos; e por diferença, ao apresentarem duas técnicas quase opostas quando discutem acerca do aspecto matérico da disseminação de informação – vídeo digital e impressão artesanal sobre papel, respectivamente.

Cavalo-de-tróia
Para a obra CoroNews, vídeo-arte digital de 1’50”, Beiguelman criou um repositório com notícias veiculadas em mídia digital acerca das falas criminosas do presidente Jair Bolsonaro sobre o corona vírus. Tais relatos versavam principalmente sobre momentos críticos em que o Brasil começava a lidar com os efeitos – informacionais e clínicos – da pandemia e com a assoladora marca de 600 mil mortos. Esse repositório era abastecido também por notícias que dissertavam sobre as possibilidades inventivas de um futuro pós-pandêmico.
    A artista, então, embaralhou os códigos de programação dessas páginas, operação semelhante à de um vírus que, na biologia, infecta e reconfigura o código genético de suas células-alvo. Tudo então entra em pane e instaura-se um caos: como ao estado de alerta e alucinante resposta do sistema imunológico humano a uma infecção, no vídeo de Beiguelman as caixas de texto e imagens são redimensionadas para tamanhos ilegíveis, hierarquias de textos e códigos são revirados e cores oscilam em lampejos caóticos. No ruído visual e sonoro que se apresenta, revelam-se as mazelas da gestão desastrosa da pandemia no Brasil.
    Entendendo a linguagem como ferramenta híbrida, a artista intitula a obra a partir de um trocadilho com as fake news – tipo de informação sem profundidade científica e compromisso ético, disseminada como um vírus pela internet e fundamental para a insurgência e manutenção de uma onda conservadora e negacionista que assola o mundo. Esse jogo de palavras sobre o tema também é feito por Beiguelman no título do seu livro Coronavida: Pandemia, cidade e cultura urbana, lançado pela editora da Escola da Cidade em 2020.
    Beiguelman apresenta listas de notícias que se metamorfoseiam, com thumbnails de fotografias chocantes, que figuram desde profissionais da saúde com equipamentos de proteção que cobrem o corpo todo, assembleias políticas para tomadas de decisão sobre a pandemia, sepultamentos, manifestações pelo colapso – e pelo descaso – do sistema brasileiro de saúde e pessoas em profundo luto pela perda de entes queridos pela pandemia. Como flashes, também aparecem mapas de vacinação, números de mortos pela COVID-19 e termos amplamente utilizados, como “cloroquina” e “Coronavac”.
    Um dos pontos-chave da obra é perceber que, junto às imagens alucinantes, há a voz de Bolsonaro falando palavras sem sentido. Dessa vez, não sem sentido por sua incongruência cognitiva ou total despreparo intelectual, mas incompreensíveis em termos de similaridade com o português ou com qualquer outra língua falada e culturalmente elaborada. Beiguelman seleciona trechos críticos de falas do presidente, os inverte e os remasteriza, resultando em tonalidades exclamativas e imperativas que podem lembrar discursos autoritários históricos. Ao reproduzir os áudios de trás pra frente, a artista relata à seLecT que “muitas pessoas acham a sonoridade similar às gravações de discursos de Hitler, provavelmente pela perversão enraizada nas falas”.
    No fim do vídeo, em um crescendo inquietante, Beiguelman insere trechos de áudio não invertidos de falas de Bolsonaro no famoso pronunciamento de 10 de março de 2020, em Miami, em que o presidente diz que o mundo passa por uma “pequena crise”, que “a questão do corona vírus não é tudo isso que a grande mídia propaga pelo mundo todo” e que “é muito mais fantasia”. No dia em que o presente texto foi escrito, o Brasil acumulava 663.513 óbitos pela COVID-19.

Totemizar ou tokenizar
CoroNews e CoroNews: Tou Va Vou foram exibidos ao público pela primeira vez na 17ª edição da SP-Arte, em outubro de 2021, na exposição Arte & Tecnologia: uma revolução em curso, curada por Ana Carolina Ralston. Recentemente, em abril de 2022, a plataforma brasileira de cripto-arte e comércio de NFTs Tropix apresentou o vídeo CoroNews em seu stand na 18ª edição da SP-Arte, com um monitor exclusivo para o trabalho, que figurava entre uma das obras com maiores valores de lance inicial – com preços anunciados na criptomoeda MATIC, da estrutura Polygon.
    Em um debate incisivamente consciente e crítico sobre tradição e tecnologia, Beiguelman partilha a matriz que gerou o vídeo CoroNews na criação livro de artista CoroNews: Tou Ta Vou. Em plena era de informações que circulam por hiperfluxos digitais e o questionamento ontológico desses conteúdos, a artista reconecta pontos solidamente abordados em suas pesquisas e produções artísticas ao propor uma obra digital e uma obra física indissociáveis – complementares no mesmo grau que são contrastantes. Ao mesmo tempo que, em CoroNews: To Va Vou, Beiguelman projeta, grafa e prensa o que nos parecia dissolvido – a informação na contemporaneidade –, em CoroNews, a artista nos instiga a questionar se, nos dias atuais, totemizar e tokenizar não são a mesma coisa.
    Segundo escreve a própria artista, “Tou Va Vou (תֹהוּ וָבֹהוּ) é o modo como no Bereshit (בְּרֵאשִׁית), ou Gênesis, primeiro livro da Bíblia hebraica, descreve-se o antes da criação do universo. Quando tudo está em aberto e em total estado de vir a ser”. O livro materializa um aglomerado desordenado de energia potencial, como um estado de grande desordem que precede um evento de grande criação.
    De forma perspicaz, Beiguelman materializa as imagens geradas em seus processos de operação algorítmica em um livro de artista de 28 páginas, com 53,5 x 58 cm quando fechado. Quando aberto, a obra tem mais de um metro de largura e folheá-la se assemelha a examinar um antigo livro sagrado – as grandes folhas são encadernadas manualmente com um suporte de madeira polida e afixadores metálicos, que sugerem certo cuidado no manuseio e um ritmo lento de estudá-las.
    Como em um bom livro sagrado, a leitura é ambígua, com vários caminhos interpretativos, além de se remeter sempre ao futuro em um caótico tom profético. A obra nos possibilita imaginar se, quando os tradicionais livros sagrados foram escritos e organizados, eles não se assemelhariam a algo dessa natureza – inclusive com o choque de ver uma tradição acabar de nascer, ou do estado do papel ainda imaculado que um dia será tratado como antigo e delicadíssimo. Afinal, como é estar diante da criação da informação? A partir da análise das obras de Beiguelman, percebemos que ao considerarmos os avanços de uma inteligência artificial, nos deparamos com um panorama indigesto acerca da desinteligência humana.

Odiolância
Como sons de fundo a que estaríamos acostumados nas metrópoles brasileiras, Odiolândia começa com barulhos de helicópteros e de violentas falas policiais e reacionárias. Os áudios, provenientes de vídeos publicados na internet pelos integrantes das ações, instauram um clima de guerra onde a cidadania é inexistente.
    Com tela preta, como se fechássemos os olhos para imagens estarrecedoras pelas quais não queremos mais ser penetrados, o vídeo se desenrola com comentários escritos e publicados nas redes sociais quando das ações das forças de segurança pública de remoção de pessoas em situação de rua na Cracolândia, em São Paulo, em 2017. As expressões indicam alvos dos grandes problemas do Brasil: dependentes químicos, nordestinos, muçulmanos, comunistas e gays, que se alastram como um tumor na malha urbana.
    Ao mesmo tempo que defendem Deus, o progresso, o trabalho e a família cristã, apoiam testes de armas químicas e torturas brutais em adictos, recusando qualquer possibilidade de perdão, compaixão, piedade ou acolhimento – cernes do próprio cristianismo –, propondo a exterminação em massa ao invés da reabilitação social. Essa terra do ódio pantanosa foi encharcada por uma fissura mínima na barreira que a continha: fenda essa inicialmente inofensiva, mas que, em um rompante, arrebentou as noções de civilidade e permitiu que se manifestasse toda a fúria violenta de um conservadorismo doentio, obscenamente alimentado por dinâmicas de poder apodrecidas.

Ditamapa
Na contramão de um suposto desenvolvimento atrelado à ideia de urbanização, Ditamapa apresenta nomes de ruas, avenidas, pontes e outros topônimos que homenageiam presidentes da ditadura militar brasileira. A partir de um complexo mapa interativo com infográficos, fotos coletadas pelo Google Streetview e imagens de satélite, Beiguelman apresenta pontos georreferenciados dessas ocorrências, alertando sobre a precariedade de infraestrutura urbana que teoricamente seria sanada pelos políticos homenageados e propondo uma revisão histórica e política dessas nomenclaturas. Pareia, portanto, sofisticados e tecnológicos sistemas de análise de dados com a pífia educação política brasileira que prevê a manutenção dessas homenagens e se materializa em ruas com precárias situações habitacionais, sanitárias e urbanas.
    A homenagem, potente dispositivo de lembrança e de permanência no tempo, é contrastada ao ser ilustrada com o esquecimento e o descaso a que esses lugares são legados. Essa “geografia da memória do poder”, com múltiplas camadas de dados e interpretações, apresentam cicatrizes no território brasileiro, além da incoerência de ainda batizá-las com os nomes de quem as incisou.

Texto originalmente publicado na seLecT #54, em 26 de julho de 2022
Giselle Beiguelman, CoroNews: Tou Va Vou, 2022.

Giselle Beiguelman, Odiolândia, 2017.


Giselle Beiguelman, Ditamapa, 2021.


Giselle Beiguelman, CoroNews, 2022.