Guilherme Callegari, ZERO, vistas da exposição, 2023.
2023. Guilherme Callegari
ZERO
Curadoria da exposição individual do artista na galeria INDEX, em Brasília
Curadoria da exposição individual do artista na galeria INDEX, em Brasília
06.09-02.10.2023
Galeria Index, Brasília
Em ZERO, Guilherme Callegari (Santo André, SP, 1986) apresenta trabalhos que investigam possíveis intersecções entre escrita e pintura, bem como relações entre linguagem e tipografia, ambas assentes na cultura visual contemporânea. A pesquisar o tema de forma sistemática nos últimos anos, o artista se debruça sobre como elementos tipográficos, como letras, números e símbolos, podem extrapolar seus limites linguísticos e habitarem âmbitos essencialmente visuais. Além disso, explora como conceitos e ferramentas usuais do design gráfico, como o uso da retícula, das margens e dos alinhamentos, podem ser transplantados para a prática da pintura.
Os trabalhos indagam sobre como expressões culturais locais colidem e se hibridizam com fluxos globais de imagens, aproximando a atmosfera fabril das ruas de Santo André, polo industrial e automobilístico do ABC paulista, à efervescência de imagens provenientes de diversas matrizes, como peças publicitárias afixadas em espaços públicos, o hiperconsumo imagético digital e cânones da história da pintura.
O artista funde possibilidades subversivas da pintura com usuais rigidezes do design gráfico, resultando em obras que constantemente desafiam uma noção visual pautada pelas normas da produção publicitária, ao mesmo tempo que incorporam uma gestualidade irrestrita que caracteriza a pintura contemporânea. Callegari embaralha, mascara e justapõe marcas originalmente pensadas para o sucesso comercial e fácil memorização, causando estranhezas que ainda as mantêm reconhecíveis, mas que ressoam sobre outras áreas da memória e da cognição.
Tais elementos ganham outras dimensões quando são transpostas não somente à prática da pintura, com seus variados suportes, materiais e técnicas, mas à história da disciplina, em que Callegari demonstra profunda erudição. É possível, portanto, discutir cruzamentos entre design gráfico e pintura a partir da recondução, pelo artista, das duas disciplinas a um estado zero, compreendendo ambos, na prática, como imagem. Tratando-os em uma hierarquia horizontal, Callegari chega em ZERO, um denso estado de latência, onde rigor e desvio não são forças anulantes, mas corroboram para a impureza caótica e acumulativa de um estado puro [1].
De forma provocativa, sob o título ZERO, o artista apresenta pinturas com elementos circulares que podem evocar uma variedade de protagonistas. Por vezes, Callegari pinta o que aparenta ser uma retícula, um espaço modulado marcado por bolinhas alinhadas e igualmente espaçadas que pautam o início de qualquer produção gráfica: determina o momento zero da tela, seja de computador ou de pintura. No entanto, esses círculos são ligeiramente desalinhados pelo artista, que retira o caráter utilitário dessa retícula potencial, embora ainda ateste sua presença incontornável na observação das imagens contemporâneas.
ZERO, que pode também habitar o âmbito da tipografia, da linguística e da matemática, representa um vazio que tem som e grafia. Mesmo o hiato, o vácuo e a lacuna têm um nome e um barulho. É a partir do desmantelamento dessa estrutura linguística complexa criada pela história da pintura moderna e contemporânea que Callegari objetiva uma pintura em grau zero. Libertar as letras, as imagens e os símbolos, significa desafiá-los, individual e arduamente, para que a pintura já chegue destilada para o observador, em seu estado de total potência.
Apagar ou corrigir, para Callegari, significa aplicar mais camadas, cobrir de tinta, resguardando o gesto desacertado que se pretende retificar, mas fazendo dele base constituinte da pintura [2]. Zerar, portanto, é adicionar infinitamente, extrapolando a linguagem de sua corporeidade e a corporeidade de sua linguagem [3]. Na tela não está só o trabalho mental, mas o largo labor corporal, o braço, a mão, o dorso, as pernas: o movimento do corpo impregnado os traços grifados pelo pintor, em ação imoderada que atesta o grão, o empasto da matéria, em atrito com a superfície da pintura. Ao mesmo tempo em que são fragmentos, por comporem visualmente uma espécie de ruído, são gestos individuais, avanços do pintor perante a tela. Mais que a abstenção, ZERO é a exaustão.
Embora sujo pela própria disciplina da história da pintura e pela estética urbana ruidosa — que tentam se agarrar em princípios de ordenação, como os espaçamentos normatizados e a retícula — o artista oferece ao leitor lava em estado de latência, fervente e maleável, com as mãos em concha como quem dá água, acostumadas ao calor da pedra líquida. Tal rigor poderia, inclusive, alinhar-se a preceitos mais antigos da história da pintura que os geralmente citados por Callegari, como os métodos tratadísticos de composição geométrica renascentista, da qual o artista tangencia e desvia. Nessa exposição, Callegari apresenta o embate entre os momentos críticos de origem e de fim, do engessamento da história e da leitura dos signos à liberdade fugaz e ativa de uma pintura em grau zero.
Notas
[1] A noção de grau zero na pintura é uma citação-homenagem a Barthes, Roland. Le degré zéro de l’écriture. Paris: Seuil, 1953.
[2] Destaco a ideia de griffure, proposta por Roland Barthes ao analisar as intersecções entre a linguagem (ou o ato de grafar) e a pintura em Cy Twombly, cf. Barthes, Roland. Cy Twombly. Paris: Seuil, 2016, p. 12.
[3] Cy Twombly em 16 de dezembro de 1993: “Eu uso a tinta como um apagador. Se não gosto de algo, eu simplesmente cubro com tinta” [“I use paint as na eraser. If I don’t like something, I just paint it out”]. Mancusi-Ungaro, Carol; “Cues from Cy Twombly”. In: Sylvester, Julie; Del Roscio, Nicola. Cy Twombly Gallery: the Menil Collention, Houston. New York: Cy Twombly Foundation/Menil Foundation, 2013, p. 69.
Texto originalmente publicado na exposição “ZERO” na galeria Index, em Brasília, de 6 de setembro a 2 de outubro de 2023
Galeria Index, Brasília
Em ZERO, Guilherme Callegari (Santo André, SP, 1986) apresenta trabalhos que investigam possíveis intersecções entre escrita e pintura, bem como relações entre linguagem e tipografia, ambas assentes na cultura visual contemporânea. A pesquisar o tema de forma sistemática nos últimos anos, o artista se debruça sobre como elementos tipográficos, como letras, números e símbolos, podem extrapolar seus limites linguísticos e habitarem âmbitos essencialmente visuais. Além disso, explora como conceitos e ferramentas usuais do design gráfico, como o uso da retícula, das margens e dos alinhamentos, podem ser transplantados para a prática da pintura.
Os trabalhos indagam sobre como expressões culturais locais colidem e se hibridizam com fluxos globais de imagens, aproximando a atmosfera fabril das ruas de Santo André, polo industrial e automobilístico do ABC paulista, à efervescência de imagens provenientes de diversas matrizes, como peças publicitárias afixadas em espaços públicos, o hiperconsumo imagético digital e cânones da história da pintura.
O artista funde possibilidades subversivas da pintura com usuais rigidezes do design gráfico, resultando em obras que constantemente desafiam uma noção visual pautada pelas normas da produção publicitária, ao mesmo tempo que incorporam uma gestualidade irrestrita que caracteriza a pintura contemporânea. Callegari embaralha, mascara e justapõe marcas originalmente pensadas para o sucesso comercial e fácil memorização, causando estranhezas que ainda as mantêm reconhecíveis, mas que ressoam sobre outras áreas da memória e da cognição.
Tais elementos ganham outras dimensões quando são transpostas não somente à prática da pintura, com seus variados suportes, materiais e técnicas, mas à história da disciplina, em que Callegari demonstra profunda erudição. É possível, portanto, discutir cruzamentos entre design gráfico e pintura a partir da recondução, pelo artista, das duas disciplinas a um estado zero, compreendendo ambos, na prática, como imagem. Tratando-os em uma hierarquia horizontal, Callegari chega em ZERO, um denso estado de latência, onde rigor e desvio não são forças anulantes, mas corroboram para a impureza caótica e acumulativa de um estado puro [1].
De forma provocativa, sob o título ZERO, o artista apresenta pinturas com elementos circulares que podem evocar uma variedade de protagonistas. Por vezes, Callegari pinta o que aparenta ser uma retícula, um espaço modulado marcado por bolinhas alinhadas e igualmente espaçadas que pautam o início de qualquer produção gráfica: determina o momento zero da tela, seja de computador ou de pintura. No entanto, esses círculos são ligeiramente desalinhados pelo artista, que retira o caráter utilitário dessa retícula potencial, embora ainda ateste sua presença incontornável na observação das imagens contemporâneas.
ZERO, que pode também habitar o âmbito da tipografia, da linguística e da matemática, representa um vazio que tem som e grafia. Mesmo o hiato, o vácuo e a lacuna têm um nome e um barulho. É a partir do desmantelamento dessa estrutura linguística complexa criada pela história da pintura moderna e contemporânea que Callegari objetiva uma pintura em grau zero. Libertar as letras, as imagens e os símbolos, significa desafiá-los, individual e arduamente, para que a pintura já chegue destilada para o observador, em seu estado de total potência.
Apagar ou corrigir, para Callegari, significa aplicar mais camadas, cobrir de tinta, resguardando o gesto desacertado que se pretende retificar, mas fazendo dele base constituinte da pintura [2]. Zerar, portanto, é adicionar infinitamente, extrapolando a linguagem de sua corporeidade e a corporeidade de sua linguagem [3]. Na tela não está só o trabalho mental, mas o largo labor corporal, o braço, a mão, o dorso, as pernas: o movimento do corpo impregnado os traços grifados pelo pintor, em ação imoderada que atesta o grão, o empasto da matéria, em atrito com a superfície da pintura. Ao mesmo tempo em que são fragmentos, por comporem visualmente uma espécie de ruído, são gestos individuais, avanços do pintor perante a tela. Mais que a abstenção, ZERO é a exaustão.
Embora sujo pela própria disciplina da história da pintura e pela estética urbana ruidosa — que tentam se agarrar em princípios de ordenação, como os espaçamentos normatizados e a retícula — o artista oferece ao leitor lava em estado de latência, fervente e maleável, com as mãos em concha como quem dá água, acostumadas ao calor da pedra líquida. Tal rigor poderia, inclusive, alinhar-se a preceitos mais antigos da história da pintura que os geralmente citados por Callegari, como os métodos tratadísticos de composição geométrica renascentista, da qual o artista tangencia e desvia. Nessa exposição, Callegari apresenta o embate entre os momentos críticos de origem e de fim, do engessamento da história e da leitura dos signos à liberdade fugaz e ativa de uma pintura em grau zero.
Notas
[1] A noção de grau zero na pintura é uma citação-homenagem a Barthes, Roland. Le degré zéro de l’écriture. Paris: Seuil, 1953.
[2] Destaco a ideia de griffure, proposta por Roland Barthes ao analisar as intersecções entre a linguagem (ou o ato de grafar) e a pintura em Cy Twombly, cf. Barthes, Roland. Cy Twombly. Paris: Seuil, 2016, p. 12.
[3] Cy Twombly em 16 de dezembro de 1993: “Eu uso a tinta como um apagador. Se não gosto de algo, eu simplesmente cubro com tinta” [“I use paint as na eraser. If I don’t like something, I just paint it out”]. Mancusi-Ungaro, Carol; “Cues from Cy Twombly”. In: Sylvester, Julie; Del Roscio, Nicola. Cy Twombly Gallery: the Menil Collention, Houston. New York: Cy Twombly Foundation/Menil Foundation, 2013, p. 69.
Texto originalmente publicado na exposição “ZERO” na galeria Index, em Brasília, de 6 de setembro a 2 de outubro de 2023