Igor Vidor, Céu noturno crivado de balas, vistas da exposição, Museu Nacional da República + Galeria Index, 2023.
2023. Igor Vidor
Céu noturno crivado de balas
Curadoria da exposição individual do artista no Museu Nacional da República e na galeria INDEX, em Brasília
PRESS (seLecT)
PRESS (DASartes)
PRESS (Artsoul)
Curadoria da exposição individual do artista no Museu Nacional da República e na galeria INDEX, em Brasília
PRESS (seLecT)
PRESS (DASartes)
PRESS (Artsoul)
05.10-26.11.2023
Museu Nacional da República + Galeria Index, Brasília
Essa exposição é marcada por diversas cicatrizes. A primeira incisão, que a intitula, é uma citação. O vietnamita Ocean Vuong, que imigrou ainda criança com a família para os Estados Unidos a fugir das máculas da guerra do Vietnã e da crítica situação política em Saigon, publicou em 2018 seu primeiro livro, traduzido no Brasil por Rogério W. Galindo como Céu noturno crivado de balas. Com precisão arrebatadora, Vuong pareia imagens da violência de guerra enraizadas em sua cultura e em seu núcleo familiar com versos do mais sensível lirismo, pureza de espírito e apaixonamento.
Igor Vidor, biográfica e artisticamente, segue cicatrizes análogas: por sucessíveis ameaças de morte a si e à sua família no Rio de Janeiro durante a eleição presidencial de 2018, pelas denúncias levantadas em sua pesquisa artística, recebeu exílio na Alemanha, em um programa institucional para artistas em perigo político. Além de perder diversos amigos próximos para a violência armada, defronte a todos os obstáculos que ameaçavam deitar seu corpo, sua voz e as de seus familiares, resiste e escolhe permanecer produzindo. Arduamente, não cede, pois sente que não há opção senão ferir o sistema em busca de cura coletiva.
Em uma história da ultraviolência no Brasil, Vidor investiga as possibilidades de poder da linguagem, do comando à resistência, da imagem ferrada sobre o corpo às esperanças de pacificação e alegria. Atrita, como duas fontes irradiadoras de energia, ficção e crítica, propondo denúncias da realidade política através da expressão artística, além de possibilidades de escape a partir de atenta análise factual. A ficção deixa de ser uma alienação do real, mas torna-se dispositivo de ênfase do que de fato acontece – essa observação clara é possível apenas com certo distanciamento e senso crítico, requisitos para boa mira.
Da Guerra de Canudos aos sistemas de vigilância digitais, o artista evidencia a invasão do colonialismo na história brasileira como praga, em crescente disseminação. Rearranjando o veneno e reintrojetando-o como antídoto, Vidor utiliza material bélico – como aramida à prova de balas, ferro e projéteis coletados após conflitos – em suas obras para justificar a presença de uma poesia resistente. Coloca seu bestiário, formado pela densa pesquisa de alegorias que remetem ao terror, à disposição dos mecanismos políticos, em gesto sempre esperançoso.
Cita arquivos, documentos confidenciais, pinturas canônicas, notícias de jornais e histórias orais vindas das comunidades periféricas. Demonstra a necessidade da revisitação crítica das vanguardas modernas brasileiras e a possibilidade de trabalhos geométricos lidarem intimamente com estruturas de poder e violência, honrando sistemas visuais da favela que não se abasteceram de referências academicistas aclamadas porque lhes foram negadas.
O artista nos coloca defronte a imagens e narrativas políticas passadas, mas cujas reverberações futuras são inevitáveis. Mudanças no que acontecerá são possíveis através de reconfigurações do que houve. Desse modo, em suas narrativas, aspas são postas, repostas e depostas, alternando noções de realidade. Por muitas vezes, deixam de ser símbolos de figuração ou de metáfora e passam a ser indicadores de alerta e de denúncia. São incisões discursivas. Essas mesmas aspas, que aparecem em textos e imagens, cruzam o céu como estrelas cadentes em um fatal fogo cruzado.
A primeira grande exposição retrospectiva de Vidor em um museu brasileiro exibe o núcleo questionador de sua pesquisa artística nos últimos quinze anos. Ao voltar para o Brasil após quatro anos de exílio forçado e realizar essa exposição em Brasília, no Museu Nacional da República e na Galeria Index, o artista propõe uma incisão no ninho da serpente — mais próxima ao centro vital do sistema que critica, a desmantelar a impunidade das cátedras de poder e a romper com as estruturas retroalimentadas de violência. Atém-se à crítica como esperança de mudança, em honra aos que partiram e aos que ficam.
A luz que cai sobre os corpos prenuncia fogo. A claridade política, como em um ritual de cura, acontece na ambiguidade entre luta e contemplação. Em um Céu noturno crivado de balas, a ferida permanece aberta.
This exhibition is marked by several scars. The first incision, which entitles it, is a citation. The Vietnamese poet Ocean Vuong — who immigrated as a child with his family to the United States to escape the stains of the Vietnam War and the critical political situation in Saigon — published his first book in 2018, named Night sky with exit wounds. With breathtaking precision, Vuong pairs images of war violence rooted in his culture and family with verses of the most sensitive lyricism, purity of spirit, and passion.
Igor Vidor, biographically and artistically, bears similar scars: due to successive death threats to himself and his family in Rio de Janeiro during the 2018 presidential election, for denunciations raised by his artistic research, he received exile in Germany, in an institutional program for artists in political danger. In addition to losing several close friends to armed violence, he faces all the obstacles that threaten to destroy his body, his voice, and those of his family by resisting and choosing to remain in activity. Arduously, he does not give in, as he feels there is no option but to hurt the system in search of collective healing.
In a history of ultraviolence in Brazil, Vidor investigates the possibilities of power in language, from command to resistance, from the image screwed onto the body to hopes of pacification and joy. He rubs together, like two radiating sources of energy, fiction and criticism, proposing denunciations of political reality through artistic expression, as well as possibilities of escape by careful factual analysis. Fiction ceases to be an alienation from reality, but becomes a device for emphasizing what actually happens — this clear observation is only possible with a certain distance and critical sense, requirements for good aim.
From the War of Canudos to digital surveillance systems, the artist highlights the invasion of the colonialist plague in the history of Brazil, in an eternal rebound of the increasingly widespread arms policy. Rearranging the poison and reintroducing it as an antidote, Vidor uses war material — such as bulletproof aramid, iron, and projectiles collected after conflicts — in his works to justify the presence of resistant poetry. He places his bestiary, formed by the dense research of allegories that refer to terror, at the disposal of poetic mechanisms, in an always promising gesture.
He cites archives, confidential documents, canonical paintings, newspaper reports, and oral histories from peripheral communities. By demonstrating the need for a critical revisitation of Brazilian modern avant-gardes and the possibility of geometric works dealing intimately with structures of power and violence, Vidor honors peripheral visual systems that do not reference acclaimed academic canons because they were denied to them.
The artist places us in front of past political images and narratives, but whose future reverberations are inevitable. Changes in what will happen are possible through reconfigurations of what has already happened. Thus, in Vidor’s narratives, quotation marks are placed, replaced, and deposed, alternating notions of reality. Often, they stop being symbols of figuration or metaphor and become indicators of warning and denunciation. These are discursive incisions. These same quotation marks, which appear in texts and images, cross the sky like shooting stars in a fatal crossfire.
Vidor's first major retrospective exhibition in a Brazilian museum displays the questioning core of his artistic research over the last fifteen years. Upon returning to Brazil after four years of forced exile and holding this exhibition in Brasília, at the Museu Nacional da República and Galeria Index, the artist proposes an incision in the snake's nest — closer to the vital center of the system he criticizes, to dismantle the impunity of chairs of power and breaking with the feedback structures of violence. He sticks to criticism as hope for change, in honor of those who left and those who remain.
The light that falls on the bodies portends fire. Political clarity, as in a healing ritual, happens in the ambiguity between struggle and contemplation. On a Night sky with exit wounds, the scars remain open.
Texto originalmente publicado na exposição “Céu noturno crivado de balas” no Museu Nacional da República e na galeria Index, em Brasília, de 5 de outubro da 26 de novembro de 2023
Museu Nacional da República + Galeria Index, Brasília
Essa exposição é marcada por diversas cicatrizes. A primeira incisão, que a intitula, é uma citação. O vietnamita Ocean Vuong, que imigrou ainda criança com a família para os Estados Unidos a fugir das máculas da guerra do Vietnã e da crítica situação política em Saigon, publicou em 2018 seu primeiro livro, traduzido no Brasil por Rogério W. Galindo como Céu noturno crivado de balas. Com precisão arrebatadora, Vuong pareia imagens da violência de guerra enraizadas em sua cultura e em seu núcleo familiar com versos do mais sensível lirismo, pureza de espírito e apaixonamento.
Igor Vidor, biográfica e artisticamente, segue cicatrizes análogas: por sucessíveis ameaças de morte a si e à sua família no Rio de Janeiro durante a eleição presidencial de 2018, pelas denúncias levantadas em sua pesquisa artística, recebeu exílio na Alemanha, em um programa institucional para artistas em perigo político. Além de perder diversos amigos próximos para a violência armada, defronte a todos os obstáculos que ameaçavam deitar seu corpo, sua voz e as de seus familiares, resiste e escolhe permanecer produzindo. Arduamente, não cede, pois sente que não há opção senão ferir o sistema em busca de cura coletiva.
Em uma história da ultraviolência no Brasil, Vidor investiga as possibilidades de poder da linguagem, do comando à resistência, da imagem ferrada sobre o corpo às esperanças de pacificação e alegria. Atrita, como duas fontes irradiadoras de energia, ficção e crítica, propondo denúncias da realidade política através da expressão artística, além de possibilidades de escape a partir de atenta análise factual. A ficção deixa de ser uma alienação do real, mas torna-se dispositivo de ênfase do que de fato acontece – essa observação clara é possível apenas com certo distanciamento e senso crítico, requisitos para boa mira.
Da Guerra de Canudos aos sistemas de vigilância digitais, o artista evidencia a invasão do colonialismo na história brasileira como praga, em crescente disseminação. Rearranjando o veneno e reintrojetando-o como antídoto, Vidor utiliza material bélico – como aramida à prova de balas, ferro e projéteis coletados após conflitos – em suas obras para justificar a presença de uma poesia resistente. Coloca seu bestiário, formado pela densa pesquisa de alegorias que remetem ao terror, à disposição dos mecanismos políticos, em gesto sempre esperançoso.
Cita arquivos, documentos confidenciais, pinturas canônicas, notícias de jornais e histórias orais vindas das comunidades periféricas. Demonstra a necessidade da revisitação crítica das vanguardas modernas brasileiras e a possibilidade de trabalhos geométricos lidarem intimamente com estruturas de poder e violência, honrando sistemas visuais da favela que não se abasteceram de referências academicistas aclamadas porque lhes foram negadas.
O artista nos coloca defronte a imagens e narrativas políticas passadas, mas cujas reverberações futuras são inevitáveis. Mudanças no que acontecerá são possíveis através de reconfigurações do que houve. Desse modo, em suas narrativas, aspas são postas, repostas e depostas, alternando noções de realidade. Por muitas vezes, deixam de ser símbolos de figuração ou de metáfora e passam a ser indicadores de alerta e de denúncia. São incisões discursivas. Essas mesmas aspas, que aparecem em textos e imagens, cruzam o céu como estrelas cadentes em um fatal fogo cruzado.
A primeira grande exposição retrospectiva de Vidor em um museu brasileiro exibe o núcleo questionador de sua pesquisa artística nos últimos quinze anos. Ao voltar para o Brasil após quatro anos de exílio forçado e realizar essa exposição em Brasília, no Museu Nacional da República e na Galeria Index, o artista propõe uma incisão no ninho da serpente — mais próxima ao centro vital do sistema que critica, a desmantelar a impunidade das cátedras de poder e a romper com as estruturas retroalimentadas de violência. Atém-se à crítica como esperança de mudança, em honra aos que partiram e aos que ficam.
A luz que cai sobre os corpos prenuncia fogo. A claridade política, como em um ritual de cura, acontece na ambiguidade entre luta e contemplação. Em um Céu noturno crivado de balas, a ferida permanece aberta.
This exhibition is marked by several scars. The first incision, which entitles it, is a citation. The Vietnamese poet Ocean Vuong — who immigrated as a child with his family to the United States to escape the stains of the Vietnam War and the critical political situation in Saigon — published his first book in 2018, named Night sky with exit wounds. With breathtaking precision, Vuong pairs images of war violence rooted in his culture and family with verses of the most sensitive lyricism, purity of spirit, and passion.
Igor Vidor, biographically and artistically, bears similar scars: due to successive death threats to himself and his family in Rio de Janeiro during the 2018 presidential election, for denunciations raised by his artistic research, he received exile in Germany, in an institutional program for artists in political danger. In addition to losing several close friends to armed violence, he faces all the obstacles that threaten to destroy his body, his voice, and those of his family by resisting and choosing to remain in activity. Arduously, he does not give in, as he feels there is no option but to hurt the system in search of collective healing.
In a history of ultraviolence in Brazil, Vidor investigates the possibilities of power in language, from command to resistance, from the image screwed onto the body to hopes of pacification and joy. He rubs together, like two radiating sources of energy, fiction and criticism, proposing denunciations of political reality through artistic expression, as well as possibilities of escape by careful factual analysis. Fiction ceases to be an alienation from reality, but becomes a device for emphasizing what actually happens — this clear observation is only possible with a certain distance and critical sense, requirements for good aim.
From the War of Canudos to digital surveillance systems, the artist highlights the invasion of the colonialist plague in the history of Brazil, in an eternal rebound of the increasingly widespread arms policy. Rearranging the poison and reintroducing it as an antidote, Vidor uses war material — such as bulletproof aramid, iron, and projectiles collected after conflicts — in his works to justify the presence of resistant poetry. He places his bestiary, formed by the dense research of allegories that refer to terror, at the disposal of poetic mechanisms, in an always promising gesture.
He cites archives, confidential documents, canonical paintings, newspaper reports, and oral histories from peripheral communities. By demonstrating the need for a critical revisitation of Brazilian modern avant-gardes and the possibility of geometric works dealing intimately with structures of power and violence, Vidor honors peripheral visual systems that do not reference acclaimed academic canons because they were denied to them.
The artist places us in front of past political images and narratives, but whose future reverberations are inevitable. Changes in what will happen are possible through reconfigurations of what has already happened. Thus, in Vidor’s narratives, quotation marks are placed, replaced, and deposed, alternating notions of reality. Often, they stop being symbols of figuration or metaphor and become indicators of warning and denunciation. These are discursive incisions. These same quotation marks, which appear in texts and images, cross the sky like shooting stars in a fatal crossfire.
Vidor's first major retrospective exhibition in a Brazilian museum displays the questioning core of his artistic research over the last fifteen years. Upon returning to Brazil after four years of forced exile and holding this exhibition in Brasília, at the Museu Nacional da República and Galeria Index, the artist proposes an incision in the snake's nest — closer to the vital center of the system he criticizes, to dismantle the impunity of chairs of power and breaking with the feedback structures of violence. He sticks to criticism as hope for change, in honor of those who left and those who remain.
The light that falls on the bodies portends fire. Political clarity, as in a healing ritual, happens in the ambiguity between struggle and contemplation. On a Night sky with exit wounds, the scars remain open.
Texto originalmente publicado na exposição “Céu noturno crivado de balas” no Museu Nacional da República e na galeria Index, em Brasília, de 5 de outubro da 26 de novembro de 2023