João Trevisan, Lembrou dos seus passos, 2023, óleo e encáustica sobre tela, 30,5 x 25 cm. Fotos Estudio Em Obra.
2023.    João Trevisan
O dorso do tigre

Curadoria da exposição individual do artista na Galeria Raquel Arnaud, em São Paulo



11.11.2023-09.02.2024
Galeria Raquel Arnaud, São Paulo



O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio;
é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre.

[Jorge Luis Borges, Nova refutação do tempo, 1952]

A imagem do tigre, em sua indefinição, sinuosidade e força, acompanha meu olhar sobre o trabalho de João Trevisan. É, por sinal, o signo do artista no horóscopo chinês, que tem um tigre feroz tatuado na pele. Suas obras mais reconhecíveis, os Intervalos, apresentam padrões tigrados. O enigmático animal figura também como personagem em curiosas narrativas que intitulam algumas de suas pinturas, próximas à exaustão do corpo, à disciplina e à extrema atenção. No budismo, corrente filosófica e espiritual que Trevisan segue de forma convicta, o tigre é associado à generosidade, à robustez e à sabedoria. Ao caminhar com Trevisan pelos morros que cercam a via férrea sobre a qual o artista dedica parte de seu trabalho em Brasília, durante os dois anos de pesquisa que antecederam essa exposição, me senti acompanhado de um tigre. Silencioso, em guarda, com pegadas firmes e determinadas, ele me assegurava conhecer aquele chão como as listras do próprio dorso.
    Esse dorso cambiante, cuja ossatura se movimenta sob uma pele vibrante com silhueta quase fixa, como montanhas em extrema presença em um horizonte silencioso, assemelha-se às pinturas de paisagens de Trevisan, expostas pela primeira vez nesta ocasião. Seu enquadramento vertical se conecta a tradições artísticas orientais correlatas com o budismo, como os biombos sanfonados e pintados com longos leitos de rios, somado à possibilidade de refletir sobre o horizonte na verticalidade. Diferentemente do planalto em que se assenta Brasília, cidade onde o artista nasceu e vive, suas paisagens se referem a lugares introspectivos ligados a memórias pessoais, como a perda do pai ou viagens familiares à serra. Montanhas agudas se erguem e criam, sob sua proteção, um lago plácido e contemplativo, formando refúgios mentais imaginados. Convidam para uma caminhada silenciosa a explorar o que está atrás de uma montanha, para o descobrimento de um paraíso perdido. Como esse oásis, presente, mas nem sempre visível, baila sinuosamente o tigre, sobre as cordilheiras que mimetizam seu dorso, em lâminas de água que tremeluzem com o caminhar certeiro.
    Nas também inéditas pinturas monocromáticas, Trevisan se debruça sobre os múltiplos modos pelos quais a luz e a cor podem ser captadas pelo olhar, sobrepondo e justapondo blocos cromáticos em profunda análise da obra escrita e pintada de Josef Albers (1888-1976). Pedem a visão oblíqua do tigre em caça, enviesada e precisa, revelando não somente detalhes inesgotáveis sobre o comportamento da luz, mas pistas sobre si mesmo, em um espelhamento de suas inquietações sobre tempo e percepção na fatura dos trabalhos. Dispõe seus corpos verticais e cobre-os com uma velatura em cor que, por essas preocupações e configurações, aproximam os trabalhos de naturezas-mortas, sejam elas as de Josefa de Óbidos (1630-1684), pelo véu luminoso e encerado da técnica à la candela, ou de Giorgio Morandi (1890-1964), pela luz embalsamada, pastosa e que tende à monocromia. A expansão luminosa e a irradiação das cores de uma pintura introspectiva deixam os monocromos abertos, a ocuparem o espaço livremente, sem a madeira que contorna os Intervalos.
    Regidos por ritmos silenciosos, perceptíveis apenas através da aguçada percepção dos mansos sismos que as patas felinas imprimem ao andar sobre a terra vermelha, seus já ocorrentes Intervalos apresentam-se reformulados por novas inquietações e experimentações em encáustica. Neles, pinta corpos verticais – similares aos dormentes de madeira que o artista utiliza em suas esculturas de grandes dimensões – em repetição intervalada no horizonte, agora com larguras e espaçamentos regulares. Dentro desses corpos que se repetem mesmo em suas diferenças, percebem-se as acuradas pinceladas verticais com que Trevisan orienta não somente as cores, mas as relações com a luz através da fatura da pintura. As cerdas do pincel modelam minúsculos montes e vales de tinta a óleo que se assemelham às singulares ranhuras das madeiras, cicatrizes dos dormentes de suas esculturas, ou à textura cintilante dos pelos no dorso de um tigre banhado pelo luar prateado.
    O silêncio, a disciplina e a busca de um pensamento limpo materializam-se no processo de pintura que utiliza o tempo como material elementar: cada trabalho tem em torno de trinta camadas sobrepostas, da preparação à velatura final, com dias de intervalo de secagem entre cada demão. O cuidado também é praticado na madeira cautelosamente posta, compondo um elemento tridimensional que nega ser moldura, ao passo que acentua o peso da obra e reitera sua introspecção. Como um devoto que comparece diariamente ao mesmo templo, Trevisan desenvolve, a partir da repetição, um método de pintura que continuamente se esmera, adentrado na selva, embrenhado na fatura.
    Em meio a trabalhos noturnos, surgem pinturas sobre papel, também apresentadas pela primeira vez. A decisão do contraste sobre uma superfície clara e porosa, oposta ao que usualmente produz, apresenta-se como uma expansão de uma gramática visual pelo seu inverso, de um complemento pela oposição. Enquanto os Intervalos indagam sobre a capacidade do material conter luz, ou estar ativo para a interação com ela, os papéis inquirem sobre o desvanecimento de uma luz já ausente, de uma penumbra rasante. Não solicitam ao observador um deslocamento em torno da obra a desvelar suas múltiplas possibilidades de diálogos luminosos, como o tigre que circunda e vigia a presa, mas se aproximam de rastros de uma fotografia elementar, focada em registrar o movimento da luz durante um breve instante. Deixam-nos com o enigma da intersecção da densa tinta a óleo preta com o papel extremamente leve, como o inaudível andar felino mesmo com pisadas firmes. As formas espectrais, difusas e arrastadas corroboram tal efeito: sombras por onde escorre o dia e adentra o luar granulado, frestas de luz que queimam e desbotam uma superfície. Nesses trabalhos, Trevisan propõe uma velatura que não sela pintura nenhuma, senão o próprio suporte – ou mesmo a própria luz.
    A insistência de Trevisan em argumentar sobre silêncio, tempo e luz através da matéria é como a do tigre que doma a sua própria inquietude, em eterna mudança. Põe-se totalmente presente por estar meditativo, onde a troca silenciosa ocorre através do olhar e a linguagem corre em sensível mudez. Antes impenetrável, agora vulnerável, o tigre espera atenta e respeitosamente o tempo intransponível das coisas, assistindo suas transformações à espreita, à meia-luz. Congrega força e leveza ao se firmar perante a luz que cega e a escuridão que avança sem medo. Embalado por canções de renovação, revela suas memórias ainda não construídas, tão reais quanto seu dorso, cuja sinuosidade convida o afagar da mão. Ver o silêncio agudo e tocar a luz doce é ter a mente clara como o prado.


Nota
O título da exposição é uma citação-homenagem ao filósofo paraense Benedito Nunes (1929-2011), em livro homônimo publicado em 1969. Nunes se refere a um estado oscilante da cultura ocidental assente sobre alicerces instáveis ilustrando-o como o dorso de um tigre.



/


The dorsum of the tiger


Time is the substance of which I am made.
Time is a river that sweeps me away, but I am the river;
it is a tiger that tears me apart, but I am the tiger.

[Jorge Luis Borges, New refutation of time, 1952]

The image of the tiger, with its undefined form, sinuosity, and strength, accompanies my gaze as I observe João Trevisan’s work. Interestingly, it is also the artist’s sign in the Chinese zodiac; he has a fierce tiger tattooed on his skin. His most recognizable works, the Intervalos [Intervals], feature brindle patterns. The enigmatic animal also appears as a character in intriguing narratives that serve as titles for some of his paintings, alluding to themes of bodily exhaustion, discipline, and intense focus. In Buddhism, a philosophical and spiritual tradition that Trevisan wholeheartedly embraces, the tiger is associated with generosity, robustness, and wisdom. As I walked with Trevisan through the hills surrounding the railway where he dedicates part of his work in Brasília, during the two years of research preceding this exhibition, I felt as though I were accompanied by a tiger. Silent, vigilant, with determined and steady footsteps, I was reassured that he knew the terrain as intimately as the stripes on his own back.
    This shifting dorsum, where bones move beneath vibrant skin, creating an almost fixed silhouette reminiscent of mountains dominating a silent horizon, resembles Trevisan’s landscape paintings, which are exhibited for the first time on this occasion. Its vertical framing aligns with Eastern artistic traditions related to Buddhism, akin to folding screens depicting long riverbeds, offering a chance for contemplation of the horizon through verticality. Unlike the plateau on which Brasília is situated, the city of the artist’s birth and residence, his landscapes evoke introspective places intertwined with personal memories, such as the loss of his father or family trips to the mountains. Sharp earth volumes ascend, forming a protective barrier around a placid, contemplative lake – a mental sanctuary of imagined refuge. They beckon you to take a silent walk to explore what lies behind a mountain, to discover a lost paradise. Like this oasis, ever-present but not always visible, the tiger sinuously dances, over the ridges that mimic its back, in sheets of water that shimmer with its accurate walk.
    In these previously unseen monochromatic paintings, Trevisan explores various ways in which light and color can be perceived by the human eye. He superimposes and juxtaposes chromatic blocks, conducting a profound analysis of the written and painted works of Josef Albers (1888-1976). These paintings demand an oblique perspective of the tiger in its hunt – skewed yet precise, revealing not only intricate details about the behavior of light but also offering glimpses into Trevisan’s own essence, in a mirror of his concerns about time and perception in the making of the works. He arranges his vertical bodies and covers them with a color fog that, due to these concerns and configurations, brings the works closer to the realm of still life, be it that of Josefa de Óbidos’s (1630-1684), through the luminous and waxed veil of the technique à la candela, or that of Giorgio Morandi’s (1890-1964), for the embalmed, pasty light that tends toward monochromy. The luminous expansion and irradiation of colors in an introspective painting leave the monochromes open, occupying the space freely, without the wood that outlines the Intervalos series.
    Governed by silent rhythms, discernible only through the keen perception of the gentle tremors created by feline paws on the red earth, Trevisan’s Intervalos are reimagined here with new concerns and experiments in encaustic. In these pieces, he paints vertical forms – similar to the wooden sleepers that the artist uses in his large sculptures – in repeating intervals along the horizon, now with uniform widths and spacings. Within these recurrent bodies, even in their distinctions, one can perceive the accurate vertical brushstrokes with which Trevisan not only manipulates the colors but also shapes relationships with light throughout the creation of the paintings. The brush bristles model tiny hills and valleys of oil paint, resembling the unique grains in the wood, the scars on the sleepers of his sculptures, or the gleaming texture of a tiger’s fur, bathed in the silver moonlight, on its dorsal surface.
    Silence, discipline, and the pursuit of clean thinking are encapsulated in the painting process that employs time as an elementary material: each artwork has around thirty overlapping layers, from initial preparation to the final glaze, with drying intervals spanning several days between each application. Precision is also employed in the placement of wood, creating a three-dimensional element that refuses to be just a frame; instead, it accentuates the artwork gravity and reinforces its introspective nature. Similar to a devotee who faithfully visits the same temple every day, Trevisan refines, through repetition, a painting technique that continually evolves, deep within the jungle, immersed in his craft.
    Amidst the nocturnal works, paintings on paper make their debut appearance. The decision to utilize a clear and porous surface, contrary to his usual practice, represents an expansion of visual grammar through its inversion, a complement achieved through opposition. Whereas the Intervalos explore the material’s capacity to hold light or actively engage with it, the Interseções [Intersections] paper series delve into the fading of an already absent light, of a grazing penumbra. They do not ask the viewer to move around them to reveal their multiple possibilities of luminous dialogues, akin to a tiger encircling and observing its prey. Instead, they resemble traces of a rudimentary photograph, capturing the movement of light in a fleeting moment. These artworks leave us with the enigma of the intersections of dense black oil paint and extremely light paper, like the silent tread of a tiger with purposeful steps. The spectral, diffuse, and drawn-out shapes corroborate this effect: shadows through which daylight seeps and grainy moonlight  infiltrates, fissures of light that sear and fade a surface. In these pieces, Trevisan proposes a glaze that seals no painting other than the support itself – or even the light itself.
    Trevisan’s insistence on exploring silence, time, and light through matter mirrors the tiger that tames its own restlessness, in eternal change. It achieves a profound presence through meditation, where silent exchange occurs through gaze, and language flows in sensitive muteness. Once impenetrable, now vulnerable, the tiger awaits attentively and respectfully for the insurmountable time of things, watching their transformations lurking in the half-light. It brings together strength and lightness as it stands firm in the face of the blinding light and the darkness that advances without fear. Lulled by songs of renovation, it reveals its yet-to-be-built memories as real as its back, whose sinuosity invites you to stroke it with your hand. To see the acute silence and to touch the sweet light is to have a mind clear as the meadow.


Note
The title of the exhibition is a homage-quote to the philosopher Benedito Nunes (1929-2011), for his book titled O dorso do tigre [The Back of the Tiger], published in 1969. Nunes refers to an oscillating state of Western culture based on unstable foundations, illustrating it like the back of a tiger.



Texto originalmente publicado na exposição “O dorso do tigre” na Galeria Raquel Arnaud, de 11 de novembro de 2023 a 09 de fevereiro de 2023

João Trevisan, Monocromo n. 28, 2023, óleo e encáustica sobre tela, 23,5 x 30,5 cm. Fotos Estudio Em Obra.


João Trevisan, Compromisso, da série Intersecções, 2023, óleo sobre papel, 23 x 30,5 cm. Fotos Estudio Em Obra.


João Trevisan, Monocromo n, 21, 2023, óleo e encáustica sobre tela, 23,5 x 30,5 cm. Fotos Estudio Em Obra.


João Trevisan, Intervalos, dois vermelhos, um verde e um azul, 2023, óleo e encáustica sobre tela e madeira, 184 x 204 x 5 cm. Fotos Estudio Em Obra.


João Trevisan, O dorso do tigre, vistas da exposição, 2023. Fotos Ding Musa.