Julio Villani, Museu de tudo, Casa de Vidro/Instituto Bardi, vistas da exposição, 2023. Fotos Ding Musa.
2023.    Julio Villani
Museu de tudo

Curadoria da exposição individual do artista no Instituto Bardi/Casa de Vidro, em São Paulo


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02.09-04.11.2023
Instituto Bardi/Casa de Vidro, São Paulo



Este museu de tudo é museu
como qualquer outro reunido;
como museu, tanto pode ser
caixão de lixo ou arquivo.
Assim, não chega ao vertebrado
que deve entranhar qualquer livro:
é depósito do que aí está,
se fez sem risca ou risco.

[João Cabral de Melo Neto, Museu de tudo, 1946-1974]

Pássaros com corpo de escumadeira, serpentes de trenas dobráveis, tamanduás com tronco de torrador de café. Entrar em uma casa onde esses bichos pendem do teto e pousam sobre os móveis, sabendo que sua dona projetou – além da própria casa – cadeiras-girafa e exposições dedicadas à imaginação infantil [1], não parece causar estranheza. Esssas esculturas-brinquedos, feitas por duas mãos que se confundem se são brasileiras ou francesas, ilustram que “não há melhor exemplo de que o brinquedo francês é essencialmente um microcosmo adulto; que o adulto francês vê a criança como um outro de si mesmo” [2]. É nessa ciranda que Julio Villani (1956, Marília, SP) apresenta seu Museu de tudo na Casa de Vidro de Lina Bo Bardi.
    O artista propõe o uso de objetos cotidianos com sutis intervenções que os abstraem de suas funções originais, em uma operação “quase ready-made”, como Villani se refere a um dos eixos fulcrais de sua prática. As intervenções são ligeiras por serem rápidas, mas também por serem assertivas: a justaposição de abinhas de metal e de toquinhos de madeira em um abridor cilíndrico de massas o torna, num virar de alavanca, um bicho dócil o qual não se pode mais ignorar. A máquina que ajudaria a preparar o almoço agora é um companheiro alerta.
    Diferentemente de uma genealogia dos bichos na arte contemporânea brasileira, Villani não almeja que os seus sejam mimetizados, geometrizados ou antropomorfizados. Pelo contrário, se interessa pela constituição delicada como um poeta que solda preposições e nomes próprios, adjetivos e onomatopeias, em diferentes idiomas e assemblages inventivas. Fascina-se mais pela palavra (fragmento) do que pela literatura (todo). Seus animais são dotados de bom humor, infantis não por seu amadorismo, mas por habitarem um campo irrestrito do pensamento.
    Esse horizonte epistemológico mais largo, em que podem ser estendidos longos lençóis bordados ao infinito, permite a aproximação com o dadaísmo e o surrealismo, fantasmas-protetores que Paris pousou nos ombros de Villani, como papagaios de pirata que insistentemente o faz perguntas da ordem de “quantos quilômetros de linha cabem num pote de nanquim?”. Com Museu de tudo, a Casa de Vidro acolhe o sonho que reside nas margens da realidade: à noite, vazia, deve ver os animais de Villani acordando e entoando os sempre-primeiros cantos. Pendulares, flutuam como seres levitados pelo sopro da quase-vida pela mão de Geppetto, prontos para alçar voo, ou se desmantelarem e se tornarem outros, em novos mosaicos-espíritos e poesias-amarelinhas.
    A conexão de Villani com diferentes línguas não é pelo poliglotismo, mas pelo fascínio de suas possibilidades plásticas e jeux de mots. Etimologias e traduções cruzadas demonstram os fluxos culturais viajantes, atravessantes não só na autobiografia, mas no zelo aos hibridismos migratórios. Os dispositivos linguísticos tornam-se, portanto, mecanismos de composição formal e narrativa. De Marília, no interior paulista, mas tendo vivido na Dinamarca, na Espanha e na Inglaterra na década de 1970, e radicado em Paris há mais de 40 anos, Villani se apega a idiossincrasias culturais de quando esses lugares se interseccionam: uma das esculturas utiliza um tostex, utensílio extremamente comum nas casas brasileiras para tostar pão francês que, ironicamente, não existe na França. Reafirma a inventividade brasileira para solução de problemas com objetos improváveis postos em dinâmicas otimizadas, juntos pela solda, articulados pelo fino arame.
    Há, propositalmente, um embaralhamento de nacionalidades que as afirmam e as dissipam. Boa parte dos trabalhos é apresentado em duplas: um francês e um brasileiro, distinguíveis apenas ao olho atento. São como canções de ninar que só funcionam na língua materna, ou hinos nacionais — não os oficiais, pois portam um decoro artificial pouco caro a Villani, mas as cantigas tradicionais cantadas em uníssono em reuniões afetivas de forma espontânea. Assim como Lina Bo Bardi, que tinha a Itália como berço e o Brasil como casa, Villani costura caminhos transatlânticos, em linhas tensas e relaxadas, em ziguezague ou retas.
    Através de um ato político contraprodutivo, em rebate ao descarte exacerbado dos sistemas de consumo, o artista recolhe materiais para a construção de uma nova natureza, inconformado com o abandono de bens tão preciosos. Faz lembrar, inclusive, o maravilhamento de Lina Bo Bardi que, quando criança, foi presenteada pela mãe com pedrinhas de diferentes cores vindas do estômago de uma galinha, com as quais começou sua coleção – que também avizinhava fios de ferro, parafusos e um pequeno estojo de pó de arroz feito com o aço azul dos canhões alemães depois da vitória da França na primeira guerra mundial [3]. Vale coroar com Manoel de Barros: “O que é bom para o lixo é bom para poesia. [...] As coisas jogadas fora têm grande importância” [4].
    Embora ser poeta seja uma posição política, somente a poesia já não basta: pede-se a ação, a contestação, a gestualidade defronte o abismo. O deslocamento de função caro a Villani porta-se como um gesto combativo perante regimes políticos que apontam para o totalitarismo, a determinar sentidos estritos de tudo, inclusive de escritura e de leitura. Deslocamentos de função que são também o arcabouço dos museus: fundar um museu é trazer algo de fora para dentro e torná-lo objeto de contemplação. Criar um museu de tudo é tornar valioso tudo que não está no museu, incentivando uma observação atenciosa dos objetos cheios de vida que nos cercam, em um mundo de tudo, sempre híbrido e em metamorfose.


Notas
[1] Lina Bo Bardi dedicou três exposições aos brinquedos e à infância na Fábrica de Lazer do Sesc Pompeia: Mil brinquedos para a criança brasileira (1982), Pinocchio (1983) e Entreato para crianças (1985).
[2] Roland Barthes, Mythologies, Paris: Éditions du Seuil, 1957, p. 55, tradução livre.
[3] Carta escrita à mão por Lina Bo Bardi [“Pedras contra brilhantes”] para P., de 29 de novembro de 1986, no acervo do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi.
[4] Manoel de Barros, Matéria de poesia, Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974, p. 18.



Texto originalmente publicado na exposição “Museu de tudo” no Institudo Bardi/Casa de Vidro, de 2 de setembro a 4 de novembro de 2023

Julio Villani, Museu de tudo, Casa de Vidro/Instituto Bardi, vistas da exposição, 2023. Fotos Ding Musa.