Matheus Rocha Pitta, Um Campo da Fome, 2022.
Recolher a fome
Texto crítico publicado na revista seLecT sobre instalação do artista em Pernambuco
PDF (pt)
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Instalação de Matheus Rocha Pitta risca na terra as vicissitudes de uma alimentação colonial estruturada a partir da fome
Um Campo da Fome, instalação do artista mineiro Matheus Rocha Pitta, foi gestada em 2019, em um cenário pré-pandêmico. O Brasil, embora já sofresse incisivos atentados à democracia, havia suprido a porcentagem de habitantes em insegurança alimentar após programas públicos que tiraram o país do Mapa da Fome. Pensar em um retorno às estatísticas da fome era no máximo um mau agouro. Rocha Pitta referenciava, portanto, uma fome inerente à cultura latino-americana, força motriz do próprio sistema de produção e distribuição de alimentos no país.
A instalação de caráter permanente – uma horta de concreto e barro cercada, com 30 canteiros retangulares e cerca de 9000 peças cerâmicas em formas de frutas, raízes e legumes – foi comissionada pela Usina de Arte, instituição artística no município de Água Preta, no interior Pernambucano, e cobre uma área de 720 metros quadrados. A Usina de Arte ressignifica, por meio da prática artística, cultural e ambiental, uma indústria desativada em 1988. Com residências, exposições, programação voltada à comunidade local e trabalho de reflorestamento, a instituição quer reverter os danos causados à terra pela prática de monocultura.
Lavoura-lápide
O planejamento de Um Campo da Fome, em contexto diferente do atual, reitera um aspecto trans-histórico do trabalho. As semelhanças com o panorama de hoje são estarrecedoras. Provam que a fome do Brasil está enraizada em um passado colonial, que se projeta inevitavelmente em um futuro próximo, em que fome e morte andam juntas. Rocha Pitta, todavia, não cantou presságio ou maldição prestes a acontecer. Embora assente em uma história política urgente e presente, sobre uma fome que é uma necessidade fisiológica imediata, diária, o projeto traz à tona que este é um estado político de precarização que se arrasta através dos séculos.
As fotografias da instalação já concluída assemelham-se às sufocantes imagens aéreas dos sepultamentos em massa durante a pandemia da Covid-19 no Brasil, assim como a própria inscrição “Um campo da fome / Matheus Rocha Pitta 2019/22” em uma placa de cerâmica crua se assemelha a uma lápide. A lavoura, teoricamente ligada à vida, e a sepultura, ligada à morte, reiteram essa contradição de uma alimentação violenta, colonial, que tem a própria fome como cerne. Há de se destacar, contudo, que os sistemas de produção de alimentos no Brasil não são naturais, mas políticos, e que a fome não se dá pela falta de comida, mas pela falta de partilha.
A incisão na terra e o corte no espaço se relacionam com trabalhos prévios de Matheus Rocha Pitta, possibilitando aproximações com o trabalho do estadunidense Gordon Matta-Clark, influência declarada do artista mineiro. Resguardando contextos e temas bastante diferentes – embora haja uma leve tangência temática com o trabalho Food (1972), de Matta-Clark –, o gesto da incisão no espaço construído, a ruptura questionadora das lógicas econômicas e as discussões sobre a locação da obra dentro ou fora dos limites do espaço museológico são inquietações compartilhadas. À semelhança de trabalhos que utilizam a terra como matéria, como Circumambulatio (1972) de Anna Bella Geiger, e o corpo de trabalho de Bené Fonteles, percebe-se em Um Campo da Fome reverberações de inquietações panorâmicas da arte contemporânea ocidental em uma realidade específica.
Estética da fome
Rocha Pitta destaca o forte vínculo que o trabalho tem com Estética da Fome (1966), manifesto anti-colonial, escrito pelo cineasta baiano Glauber Rocha. No texto, o cineasta traça os vínculos entre a fome e a violência em um cenário colonizado, propondo ações revolucionárias que fariam com que o colonizador compreendesse a existência do colonizado. Rocha critica a imagem exótica atrelada ao brasileiro – e à fome brasileira –, ancorada sempre em um “estranho surrealismo tropical”, enquanto o brasileiro “não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome”.
Glauber Rocha circunscreve, em Estética da Fome, uma visualidade latino-americana baseada na precariedade e na terra, uma forma histórica e geograficamente ampliada, no sentido de uma terra violentada e horrorizada. Frisa, sobretudo, a incompreensão comunicacional entre o “latino” e o “homem civilizado”, cognição impossibilitada tanto pela miséria vivida pelo latino, quanto pelo cultivo do sabor desse sofrimento por parte do observador europeu. Em seus vínculos com Um Campo da Fome, Matheus Rocha Pitta destaca uma frase central de Glauber Rocha em seu manifesto: “A fome é o nervo da cultura latino-americana”. Faz-se um diagnóstico, portanto, de que o sistema de distribuição de alimentação no Brasil é centrado na fome, e que sem uma revisão estrutural das dinâmicas de distribuição de poder e renda não é possível a expurgação da fome.
Heranças coloniais do alimento no Brasil
O trabalho de Rocha Pitta dialoga com a própria história do local onde a instalação se situa, na antiga Usina Santa Terezinha, a maior produtora de álcool e açúcar do Brasil nos anos 1950 – e suas relações com a terra. As diretrizes coloniais impuseram uma tradição agrícola no Brasil que priorizava a destinação de terras férteis para a monocultura – da cana-de-açúcar colonial à soja contemporânea –, destinando a utilização de um solo com alto potencial produtivo para a exportação, e não para consumo local. O cultivo para subsistência, as práticas de agricultura familiar e a pecuária foram, durante o período colonial, mantidas no sertão, em terras áridas, menos férteis e de difícil acesso. A imagem caricata de um território brasileiro faminto, desenhada a partir da paisagem sertaneja nordestina vem sendo cultivada desde então, enquanto a tradição de produção de alimento no Brasil é centrada em uma partilha desigual.
Segundo pesquisa da ONU, entre 2019 e 2021, mais de 61 milhões de brasileiros se encontravam em situação de insegurança alimentar. O Mapa da Fome, composto por nações cuja taxa da população que enfrenta a falta crônica de alimentos supera 2,5%, lista novamente o Brasil, cujo índice de fome crônica é de 4,1% dos habitantes. O cenário alarmante é uma sequela da insustentabilidade dos sistemas brasileiros de produção de alimentos, que privilegiam a agricultura monocultora, extrativista e voltada à exportação, enquanto a distribuição interna não garante a subsistência integral da população.
As frutas, raízes e legumes que compõem os lotes de Um Campo da Fome, foram moldados em barro cru por Domingos Inácio, artesão local que veio a falecer em decorrência da Covid-19, alguns meses depois da conclusão do projeto, passam por um processo gestual de imagetização. As espigas de milho, as bananas, as jacas, os cacaus e as canas-de-açúcar, por exemplo, escapam sua capacidade alimentícia e partem para um sentido simbólico, representacional, mas em uma dinâmica ambígua: dá-se o fruto como imagem, mas se tira o fruto como alimento.
Refletir sobre Um Campo de Fome de forma próxima a práticas das tradições de matriz iorubá e ameríndias – inclusive nos vínculos ritualísticos com suas produções em cerâmica e suas relações com o alimento – pode nos levar a pensar se o trabalho, ao invés de uma denúncia política atual, se coloca como um ritual de cura que expurga a fome. “No século I, havia a delimitação de ‘um campo de fome’ a leste da acrópole grega dedicado a Boulimos, a Fome, descrito por um geógrafo grego. Nesse campo onde nada era plantado, aprisionava-se a fome, onde nenhuma pessoa era autorizada a entrar: caso entrasse, a fome era liberta e alastrava-se pela cidade. É desse relato que vem o nome do trabalho”, conta Rocha Pitta em entrevista à seLecT.
Um Campo de Fome, de certa forma, se afirma muito mais como um amuleto do que como uma denúncia – embora essas aproximações sejam inevitáveis –, estabelecendo um espaço de proteção que delimita barreiras para que a fome seja contida e limada da sociedade brasileira. Por uma desconfiança do poder da queixa, pelo ceticismo em tudo após olhar a fome nos olhos, por uma compreensão das raízes coloniais brasileiras que ferem a terra, Matheus Rocha Pitta opta por uma intervenção curativa direta.
Texto originalmente publicado na seLecT #55, em 4 de outubro de 2022
Um Campo da Fome, instalação do artista mineiro Matheus Rocha Pitta, foi gestada em 2019, em um cenário pré-pandêmico. O Brasil, embora já sofresse incisivos atentados à democracia, havia suprido a porcentagem de habitantes em insegurança alimentar após programas públicos que tiraram o país do Mapa da Fome. Pensar em um retorno às estatísticas da fome era no máximo um mau agouro. Rocha Pitta referenciava, portanto, uma fome inerente à cultura latino-americana, força motriz do próprio sistema de produção e distribuição de alimentos no país.
A instalação de caráter permanente – uma horta de concreto e barro cercada, com 30 canteiros retangulares e cerca de 9000 peças cerâmicas em formas de frutas, raízes e legumes – foi comissionada pela Usina de Arte, instituição artística no município de Água Preta, no interior Pernambucano, e cobre uma área de 720 metros quadrados. A Usina de Arte ressignifica, por meio da prática artística, cultural e ambiental, uma indústria desativada em 1988. Com residências, exposições, programação voltada à comunidade local e trabalho de reflorestamento, a instituição quer reverter os danos causados à terra pela prática de monocultura.
Lavoura-lápide
O planejamento de Um Campo da Fome, em contexto diferente do atual, reitera um aspecto trans-histórico do trabalho. As semelhanças com o panorama de hoje são estarrecedoras. Provam que a fome do Brasil está enraizada em um passado colonial, que se projeta inevitavelmente em um futuro próximo, em que fome e morte andam juntas. Rocha Pitta, todavia, não cantou presságio ou maldição prestes a acontecer. Embora assente em uma história política urgente e presente, sobre uma fome que é uma necessidade fisiológica imediata, diária, o projeto traz à tona que este é um estado político de precarização que se arrasta através dos séculos.
As fotografias da instalação já concluída assemelham-se às sufocantes imagens aéreas dos sepultamentos em massa durante a pandemia da Covid-19 no Brasil, assim como a própria inscrição “Um campo da fome / Matheus Rocha Pitta 2019/22” em uma placa de cerâmica crua se assemelha a uma lápide. A lavoura, teoricamente ligada à vida, e a sepultura, ligada à morte, reiteram essa contradição de uma alimentação violenta, colonial, que tem a própria fome como cerne. Há de se destacar, contudo, que os sistemas de produção de alimentos no Brasil não são naturais, mas políticos, e que a fome não se dá pela falta de comida, mas pela falta de partilha.
A incisão na terra e o corte no espaço se relacionam com trabalhos prévios de Matheus Rocha Pitta, possibilitando aproximações com o trabalho do estadunidense Gordon Matta-Clark, influência declarada do artista mineiro. Resguardando contextos e temas bastante diferentes – embora haja uma leve tangência temática com o trabalho Food (1972), de Matta-Clark –, o gesto da incisão no espaço construído, a ruptura questionadora das lógicas econômicas e as discussões sobre a locação da obra dentro ou fora dos limites do espaço museológico são inquietações compartilhadas. À semelhança de trabalhos que utilizam a terra como matéria, como Circumambulatio (1972) de Anna Bella Geiger, e o corpo de trabalho de Bené Fonteles, percebe-se em Um Campo da Fome reverberações de inquietações panorâmicas da arte contemporânea ocidental em uma realidade específica.
Estética da fome
Rocha Pitta destaca o forte vínculo que o trabalho tem com Estética da Fome (1966), manifesto anti-colonial, escrito pelo cineasta baiano Glauber Rocha. No texto, o cineasta traça os vínculos entre a fome e a violência em um cenário colonizado, propondo ações revolucionárias que fariam com que o colonizador compreendesse a existência do colonizado. Rocha critica a imagem exótica atrelada ao brasileiro – e à fome brasileira –, ancorada sempre em um “estranho surrealismo tropical”, enquanto o brasileiro “não come mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome”.
Glauber Rocha circunscreve, em Estética da Fome, uma visualidade latino-americana baseada na precariedade e na terra, uma forma histórica e geograficamente ampliada, no sentido de uma terra violentada e horrorizada. Frisa, sobretudo, a incompreensão comunicacional entre o “latino” e o “homem civilizado”, cognição impossibilitada tanto pela miséria vivida pelo latino, quanto pelo cultivo do sabor desse sofrimento por parte do observador europeu. Em seus vínculos com Um Campo da Fome, Matheus Rocha Pitta destaca uma frase central de Glauber Rocha em seu manifesto: “A fome é o nervo da cultura latino-americana”. Faz-se um diagnóstico, portanto, de que o sistema de distribuição de alimentação no Brasil é centrado na fome, e que sem uma revisão estrutural das dinâmicas de distribuição de poder e renda não é possível a expurgação da fome.
Heranças coloniais do alimento no Brasil
O trabalho de Rocha Pitta dialoga com a própria história do local onde a instalação se situa, na antiga Usina Santa Terezinha, a maior produtora de álcool e açúcar do Brasil nos anos 1950 – e suas relações com a terra. As diretrizes coloniais impuseram uma tradição agrícola no Brasil que priorizava a destinação de terras férteis para a monocultura – da cana-de-açúcar colonial à soja contemporânea –, destinando a utilização de um solo com alto potencial produtivo para a exportação, e não para consumo local. O cultivo para subsistência, as práticas de agricultura familiar e a pecuária foram, durante o período colonial, mantidas no sertão, em terras áridas, menos férteis e de difícil acesso. A imagem caricata de um território brasileiro faminto, desenhada a partir da paisagem sertaneja nordestina vem sendo cultivada desde então, enquanto a tradição de produção de alimento no Brasil é centrada em uma partilha desigual.
Segundo pesquisa da ONU, entre 2019 e 2021, mais de 61 milhões de brasileiros se encontravam em situação de insegurança alimentar. O Mapa da Fome, composto por nações cuja taxa da população que enfrenta a falta crônica de alimentos supera 2,5%, lista novamente o Brasil, cujo índice de fome crônica é de 4,1% dos habitantes. O cenário alarmante é uma sequela da insustentabilidade dos sistemas brasileiros de produção de alimentos, que privilegiam a agricultura monocultora, extrativista e voltada à exportação, enquanto a distribuição interna não garante a subsistência integral da população.
As frutas, raízes e legumes que compõem os lotes de Um Campo da Fome, foram moldados em barro cru por Domingos Inácio, artesão local que veio a falecer em decorrência da Covid-19, alguns meses depois da conclusão do projeto, passam por um processo gestual de imagetização. As espigas de milho, as bananas, as jacas, os cacaus e as canas-de-açúcar, por exemplo, escapam sua capacidade alimentícia e partem para um sentido simbólico, representacional, mas em uma dinâmica ambígua: dá-se o fruto como imagem, mas se tira o fruto como alimento.
Refletir sobre Um Campo de Fome de forma próxima a práticas das tradições de matriz iorubá e ameríndias – inclusive nos vínculos ritualísticos com suas produções em cerâmica e suas relações com o alimento – pode nos levar a pensar se o trabalho, ao invés de uma denúncia política atual, se coloca como um ritual de cura que expurga a fome. “No século I, havia a delimitação de ‘um campo de fome’ a leste da acrópole grega dedicado a Boulimos, a Fome, descrito por um geógrafo grego. Nesse campo onde nada era plantado, aprisionava-se a fome, onde nenhuma pessoa era autorizada a entrar: caso entrasse, a fome era liberta e alastrava-se pela cidade. É desse relato que vem o nome do trabalho”, conta Rocha Pitta em entrevista à seLecT.
Um Campo de Fome, de certa forma, se afirma muito mais como um amuleto do que como uma denúncia – embora essas aproximações sejam inevitáveis –, estabelecendo um espaço de proteção que delimita barreiras para que a fome seja contida e limada da sociedade brasileira. Por uma desconfiança do poder da queixa, pelo ceticismo em tudo após olhar a fome nos olhos, por uma compreensão das raízes coloniais brasileiras que ferem a terra, Matheus Rocha Pitta opta por uma intervenção curativa direta.
Texto originalmente publicado na seLecT #55, em 4 de outubro de 2022
Matheus Rocha Pitta, Um Campo da Fome, 2022.