PV Dias, Brega, a Dança, 2021. Vídeo-mapping no Festival Amazônia Mapping de 2021, em Belém (PA). Foto: Festival Amazônia Mapping / Estúdio Tereza e Aryanne.
O artista paraense aponta narrativas usuais amazônicas que se distanciam dos usuais estereótipos estruturados em um exotismo regional


PV Dias é um artista paraense que vive entre o Rio de Janeiro e o Pará, pesquisando os modos como as imagens de um território se estruturam e as possíveis formas de rasurar, alterar ou emendar essas estruturas. Nascido em Belém, em 1994, o artista propõe, por meio da pintura, da fotografia e das artes digitais, dinâmicas de reoperar cânones artísticos e vícios historiográficos e sociais. Dias apresenta realidades que conflitam com um imaginário fruto do senso comum imbuído de exotismos e estrangeirismos. Esses estereótipos geralmente perpetuam uma leitura da Amazônia como território ermo, sempre na periferia da modernidade.
    O artista apresenta formas de pensar uma Amazônia digital, em que os fluxos são ditados tanto pelos rios quanto pela nuvem virtual. Dias congrega amplas reflexões caras à arte contemporânea, como as discussões sobre arte ‘local’ e ‘global’ e sistemas de pensamento ‘popular’ e ‘erudito’, até a revisitação decolonialista de narrativas e historiografias, hibridismos culturais e mercado de NFTs. Sua prática artística se dá em múltiplas plataformas, como pintura, fotografia, intervenções digitais, vídeos e animações.
    De fato, a Amazônia está alheia a alguns fenômenos que acontecem em outros núcleos do Brasil – no meio artístico, por exemplo, dominado pela região do sudeste brasileiro –, mas isso se bifurca em duas matrizes contrastantes. Esse distanciamento, em alguns momentos, é mais agudo, fazendo com que os sistemas estéticos, os hábitos e a ligação com suas raízes funcionem como elos mais fortes. Por um lado, a Amazônia retratada por PV Dias carrega características muito próximas às tradições dos povos nativos – ribeirinhos e indígenas –, como o uso das redes para o descanso, as danças regionais como expressão festiva, e os barcos de madeira sobre as águas barrentas dos rios que desembocam na Baía do Guajará. Estar distante, nesse caso, não é uma obsolescência, mas uma bênção que permite a preservação de fortes aspectos culturais originários – uma resistência que tem sido paulatinamente mais árdua. Em contrapartida, num segundo viés, o artista reitera o complexo hibridismo cultural em que esse distanciamento é menor do que se imagina: apresenta as festas de aparelhagens de tecnobrega, com luzes, projetores e outros mecanismos digitais, e as cores neon como constituintes de um sistema estético regional, utilizado por Dias tanto nas vestimentas dos seus retratados quanto nos próprios padrões visuais, assim como na pintura das casas regionais de arquitetura vernacular.
    Graduado em Comunicação Social, mestrando em Ciências Sociais na UFRRJ, e com formação pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, Dias utiliza tecnologias contemporâneas para revisitar essas narrativas e apresentar imagens e expressões artísticas por muito inesperadas a quem não conhece de fato a complexidade cultural da Amazônia. O artista integra, transdisciplinarmente, tecnologias frescas e muito eficazes, desde o âmbito das ciências humanas às da computação: pode-se entender que o aparato teórico e metodológico para uma revisão historiográfica na contemporaneidade é tão sofisticado quanto os softwares de edição de imagens, de realidade aumentada e de inteligência artificial minuciosamente manipulados por Dias.
    Além de ter participado de diversas exposições coletivas e de ter realizado a sua primeira individual, intitulada “Desarmonia”, no Rio de Janeiro, em 2021, Dias tem trabalhado com relevantes instituições artísticas e veículos de comunicação, como a revista eletrônica VICE, a revista Cult, o Instituto Goethe, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), o Parque Lage e o instituto nova-iorquino Creative Time. Seus trabalhos integram os acervos permanentes de importantes instituições artísticas, como o Museu de Arte do Rio (MAR), Casa Niemeyer (UNB) e Museu d’Água (PA).
    Além de aspectos culturais e estéticos, Dias constrói, em suas obras, um discurso combatente às usuais estruturas sociais de repressão, sobretudo acerca da invisibilidade de pessoas negras nas amplas narrativas de histórias da arte – que, quando representadas, usualmente figuravam em posições de inferioridade. Na série “Rasurando Fidanza”, Dias retoma as obras do fotógrafo Filipe Augusto Fidanza (1847-1903), português radicado no Brasil, considerado um dos principais expoentes da fotografia brasileira na transição entre os séculos XIX e XX. Reiterando estruturas racistas, a partir de um olhar estrangeiro, Fidanza produziu vastas séries do que eram consideradas “fotografias étnicas”, retratando pessoas negras em postos de trabalho. Isso é um reflexo, na modernidade, da forte explosão econômica que Belém viveu no século XVII, com a colonização portuguesa, que também se abastecia da mesma matriz racista e xenofóbica. Dias revisita essas fotografias, rasurando tanto o nome do fotógrafo quanto os objetos que as pessoas retratadas portam, substituindo-os por câmeras digitais, drones e aparelhos de iluminação. O artista reescreve essas cenas, elencando os retratados não mais como objetos de um olhar estrangeiro, atrelados sempre à dureza do trabalho braçal, mas como artistas que comandam dispositivos fotográficos contemporâneos e que escrevem novas histórias e constroem suas próprias narrativas visuais. A câmera agora está nas mãos do negro amazônida.
    Esses marcantes elementos da contemporaneidade na obra de PV Dias se materializam na produção artística do jovem artista hiperconectado. Os drones, as câmeras, as cores neon, as caixas de som e os celulares não são vistos com estranheza ou distanciamento, mas são muito corriqueiras nas narrativas coletivas da Amazônia na atualidade. O artista domina amplamente as plataformas digitais, com filtros de realidade aumentada bombados no Instagram e uma nova coleção de NFTs produzida por Dias em uma das principais plataformas mundiais de comércio de cripto-arte.
    Afinal, como universos tão diferentes se chocam? Qual o resultado da colisão de uma estrutura de pensamento baseada em números, módulos e respostas quantitativas com um pensar arranjado conforme o fluxo e à curva dos rios, ao ritmo orgânico da floresta, à chuva de toda tarde? PV nos apresenta uma descarga elétrica sobre o corpo, em cores e movimentos rápidos e alucinantes, mas regidos pelos movimentos dos corpos no calor amazônico. Em um momento em que os filtros de Instagram podem ser aplicados por toda parte, Dias transporta a atmosfera amazônica, por meio de códigos digitais, a qualquer lugar do mundo.

Texto originalmente publicado na seLecT, em 14 de fevereiro de 2022

PV Dias, Tecnobrega, um casal dançando entre o Norte e o Sudeste do Brasil, 2021.


PV Dias, Brega, a Dança, 2021. Vídeo-mapping no Festival Amazônia Mapping de 2021, em Belém (PA). Foto: Festival Amazônia Mapping / Estúdio Tereza e Aryanne.


PV Dias, O rei em outros passados amazônicos possíveis, a partir da Cabanagem no Grão Pará, 2019. Acervo Museu de Arte do Rio (MAR).


PV Dias, Trabalhando em sue gabinete, 2021. 


PV Dias, Regresso de um proprietário de si: transporto-me, 2021.


PV Dias, Interior de uma casa, 2021.


PV Dias, Conversando, da série Festa silenciosa, 2021.


PV Dias, Jogando, da série Festa silenciosa, 2021.


PV Dias, Aumentando o som, da série Festa silenciosa, 2021.


PV Dias, V, da série Rasurando Fidanza, 2021.


PV Dias, VI, da série Rasurando Fidanza, 2021.


PV Dias, IV, da série Rasurando Fidanza, 2021.


PV Dias, Tecnobrega, a dança, 2021.