Ateliê de Paulo Pasta, 2023. Fotos de Ana Pigosso.
Pintura de bolso

Texto crítico publicado na revista seLecT_ceLesTe sobre exposição individual do artista

WEB


Em mostra individual que inaugura hoje, 16/3, novo espaço da Galeria Millan, Paulo Pasta releva novas dimensões de sua reflexão pictórica


Apresentam-se aqui pinturas que cabem em um bolso, assim como dizeres que cabem em um fôlego. Ser uma pintura de bolso diz respeito não somente a seu tamanho, mas a seu propósito de companhia e à sua precisão adensada. Nessas obras, Paulo Pasta reitera a capacidade imaginativa de que uma tela seja de fato carregada nesse lugar ambíguo entre a segurança e a informalidade, como um amuleto que se pretende manter próximo ao peito ou uma relíquia que zela uma lembrança sagrada. A obra coloca-se, então, como os fragmentos afetivos que se portam consigo: a carta dobrada, a foto beijada, o carinho mantido, extensões do que se ama.
    O caráter atmosférico sempre atribuído à pesquisa de Pasta permite passar a mão sobre o bolso, sentir que a pintura guardada está ali e revê-la nitidamente na lembrança, mesmo sem precisar trazê-la de volta à retina. Sente-se a textura de memória sem precisar tocá-la, embora esteja ao alcance do tato. É como se tê-la nas mãos novamente só pudesse acontecer em um lugar seguro, onde se possa ficar a sós com a obra, fora do ambiente externo e caótico que a faz ser transportada seguramente no bolso.
    Nessas pequenas telas, Pasta resolve imensuráveis problemas da pintura que não se limitam à questão do tamanho: continuariam a seguir o pintor caso ele fosse escrever um pequeno poema ou um longo romance. Centram-se em questões estruturais, como luz, cor, tempo, memória, atmosfera, síntese e indeterminação, pontos que independem das dimensões do suporte. Assim como um livro de bolso apresenta o mesmo texto, com a mesma duração, sem sumarização ou poda, as pinturas de bolso de Pasta falam do detalhe, da aproximação e do cuidado tal qual suas telas de grandes dimensões, buscando lidar com os mesmos desafios.
    Sabe-se há tempos que a pintura de Pasta repetidamente pede tempo, e que ele o utiliza como material de trabalho, bem como suas tintas. Está impregnada dele e o requer ainda mais para ser lida. Sempre nesse labirinto temporal acontece a entrega das imagens do artista ao mundo: Pasta pinta no tempo presente, mas já com uma vocação de lembrança, de algo que será refletido no futuro: “um dia, me relembrarei do momento, me perderei no passado”, escreve Roland Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso. Pintor de lembranças futuras, de presságios memoriais, de imagens atravessantes.
    Em jogos relacionais entre o objeto, o suporte e o variante, Pasta trata da posição de latência possível à noção de absoluto. Suas pinturas são pequenos convites de entrada para um universo maior, extremamente denso. São pontes afetivas entre o pintor e o observador, tensionadas com nomes por vezes trocados – inclusive, muito se fala sobre as portas, janelas, colunas e ogivas de Pasta, mas pouco se fala sobre as suas pontes, sólidas e invisíveis.
    Os elos do artista com a tradição visual cristã ecoam pelos trabalhos, seja na revisitação da espacialidade pré-renascentista – como a perspectiva propositalmente rasa, a sugestão de arcadas góticas –, seja na pintura do interior de capelinhas com telhados de duas águas, ermidas devocionais e celas monásticas. No aspecto aurático, Paulo Pasta decide pela pintura de atmosferas de episódios bíblicos que atritam em graça o humano e o divino – como a Anunciação –, e da representação da cruz, símbolo último de interseção entre a entrega e a dor. Tudo isso é tonalmente dosado pela subserviência esmerada de um apóstolo da pintura. De forma humorada, em diálogo com o legado da disciplina, instiga a pensar se a pintura como a conhecemos – a vastíssima e catedrática linguagem artística do Ocidente – cabe no bolso. Esse desafio, de concentrar imensidão no quase mínimo, Pasta bota no bolso.
    Quanto à prática da pintura, as cores de Pasta não dialogam apenas com a luz, mas também com o tempo, como se a duração fosse uma propriedade intrínseca à matéria, mesmo que enigmática. Essa duração, portanto, é dubiamente amalgamada na fatura: ao mesmo tempo que a aprisiona entre as numerosas camadas de tinta, as liberta brandamente em uma irradiação rompante. Em suas obras, a sutileza da incorporação do tempo, na disciplina e na paciência, dialoga com a densidade do corpo aplicado.
    Seus trabalhos desvelam-se na incerteza – de sentido, de forma, de referência, de hierarquia. Acontecem na singularidade dos momentos e dos encontros. Recebem quem chega com uma espécie de coroamento. São presenteados como pinturas de bolso, pedaços preciosos de tempo, que as retroalimentam infinita e afetivamente. Afinal, e disso Pasta bem sabe: fazer pintura de bolso é portar a pintura consigo.


Texto originalmente publicado na seLecT_seLecT, em 16 de março de 2023

Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.


Paulo Pasta, sem título, 2023.