Exposição Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, 2022. Fotos: Alberto S. Cerri.
2022.    Raio-que-o-parta
O desmantelo de um modernismo brasileiro

Texto crítico publicado na revista seLecT sobre 
a exposição Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo

PDF (pt)


‘Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil’ contesta as visões academicistas sudestinas e apresenta modernismos outros


A programação artística do Brasil em 2022 é amplamente permeada pelos questionamentos de como tratar, a partir de novas matrizes de pen- samento, o centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Raio-Que-o-Parta: Ficções do Moderno no Brasil empreende uma expansão de escopo analítico do impacto das diretrizes do movimento moderno na arte brasileira nos últimos cem anos. A exposição é curada pelos pesquisadores Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca, com consultoria de Fernanda Pitta e assistência curatorial de Breno de Faria, Ludimilla Fonseca e Renato Menezes.
    Outras geografias, cartografias e historiografias são apresentadas em cerca de 600 obras de 200 artistas, com nomes que possuíam forte vínculo com os círculos sociais e artísticos promotores da Semana de Arte de São Paulo, até artistas dis- tantes dos usuais polos intelectuais. Esses últimos se aproximam do que se entende por produtores de arte popular e, em muitos casos, foram absorvidos pelo anonimato historiográfico.
    Nessa exposição, festa e crítica andam juntas. “Desmantelo”, em alguns locais do Nordeste brasileiro, é bagunça grande, farra desmedida, um quebra-tudo. Ao mesmo tempo que se desconstrói e se fragmenta uma concepção obsoleta e cega de “arte moderna brasileira”, se festeja a pluralidade das múltiplas expressões artísticas verdadeiramente brasileiras, e se celebra o primeiro grande fôlego de apresentar esses relicários em um lugar de amplo destaque institucional.

Fricções culturais
Conforme texto da equipe curatorial, a mostra dedica-se “exclusivamente à reunião de obras que criaram fricções com a noção de arte moderna”. Os protagonistas não são mais realidades estacionárias e fictícias, mas o arrastar dinâmico entre compreensões de modernidade estrangeira e de expressões genuinamente brasileiras. A exposição se interessa pela serragem gerada pela ação do serrote de aço na madeira bruta: não o objeto serrado, talhado e esculpido, mas sobre o pó de madeira que se pulverizou heterogeneamente por todo o Brasil, como uma constelação de areia, e é coletada e exposta pela primeira vez de forma plural e cuidadosa.
    A união desses fragmentos microscópicos de madeira assemelha-se com a fragmentação dos azulejos utilizados nas fachadas das edificações conhecidas por um “estilo” “raio-que-o-parta”, uma das expressões resultantes da colisão entre uma onda de modernidade e a tradição da arquitetura paraense, sobretudo em Belém. As matrizes modernas chegavam a Belém cumprindo o que a sua história sempre ansiou: atingir um ápice de desenvolvimento, totalmente estruturado por um sistema higienista de pensamento e por um vira-latismo social. Uma quase Lisboa no século 18, uma quase Paris nos séculos 19 e 20.

À luz de certas letras e imagens
O art déco, o art nouveau e o próprio modernismo geometricamente purista e ortogonalizante, exemplos que constituíram a matriz plural e paulatina dos movimentos modernos, foram assimilados nas concepções estéticas belenenses inclusive fora dos meios academicistas. O “raio-que-o-parta” é precisamente a assimilação popular e não erudita dessas ondas de modernidade que quebravam na Baía do Guajará.
    É importante destacar trabalhos que buscam reanalisar essa lacuna historiográfica, como o filme Um Céu Partido ao Meio (2021), de Danielle Fonseca, presente na exposição, e as pesquisas de mestrado e doutorado de Laura Caroline de Carvalho da Costa, desenvolvidos no Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural da Universidade Federal do Pará. A exposição busca reiterar essa hostilidade historiográfica e exibir, de forma profusamente colorida e irreverente, esses objetos híbridos historicamente negligenciados.
    A exposição traz luz a outro aniversário centenário: o bicentenário da Independência do Brasil, em 1822. Porém, em que grau essa independência de fato ocorreu, quando se carregam – e se cultivam – dinâmicas coloniais e predatórias até hoje?
    Como quase todos os marcos históricos, a mudança não foi repentina. O Pará, por exemplo, só rompeu de vez com Portugal um ano depois, em 15 de agosto de 1823. A comunicação com Lisboa era mais prática do que com o Rio de Janeiro. O dia 15 de agosto, portanto, marca o feriado estadual da Adesão do Pará à Independência do Brasil. Pode-se perceber, a partir desse simples fato, a complexidade e a heterogeneidade política e cultural do país, pensamentos estruturantes na estratégia curatorial da exposição. Com as dimensões gigantescas, seja geográfica, seja culturalmente, percebe-se a cada painel da exposição ser necessário pensar o Brasil não como uma entidade consolidada, soberana e agregada, mas como uma reunião de grupos conectados em frequências diferentes.
    A exposição incentiva o pensamento de que o Brasil é constituído – agora, em 1922 e em 1822 –, por polos diversos que produziam com expressões artísticas geradas a partir do embate das tradições locais e das recepções estrangeiras. A exposição enfatiza a constante tentativa de uma inserção positivista do homem branco europeu nas matrizes de pensamentos que não eram as suas e que também estruturam o Brasil. Os artistas que sorviam dessas matrizes europeias representavam o não europeu a partir dos seus próprios moldes, em um ato “bem-intencionado” – como aponta o texto da exposição –, imaginando que esse “outro” seria grato por seu ato. Não lhe era válido um questionamento de que haviam outras cosmogonias que não a sua: nem sempre a história precisava ser grafada em tinta ou talha, mas perpetuava-se pela oralidade; nem sempre a perenidade era a resposta para tudo, enquanto muitos abraçavam a transitoriedade das coisas; nem sempre a matéria era mais importante que a ideia.
    A exposição exibe um recorte da pluralidade de expressões artísticas de heranças afro-brasileiras no Brasil. Além das imagens e narrativas africanas no hibridismo materializado em plataformas entendidas como canônicas pelos núcleos acadêmicos, como esculturas, pinturas e desenhos, as fronteiras são expandidas ao teatro, à dança e a rituais de magia e cura. Muito tardiamente, o sistema de artes pautado por diretrizes europeias entenderia e absorveria essa efemeridade das expressões artísticas ancestrais africanas e alinharia à concepção da plataforma da performance contemporânea.
    A exposição apresenta, sobretudo a partir de perspectivas de resistência, como pessoas negras podiam entender seus corpos, seus espíritos, suas tradições e suas expressões artísticas em um cenário de modernidade.

Amazônia predada
Na primeira metade do século 20, há uma retomada propagandística da visão predatória colonialista que se tinha sobre a Amazônia. Foram criadas leis de incentivo fiscal para a instalação de grandes empresas extrativistas na região, ações propagandísticas federais para a migração de trabalhadores – sobretudo brasileiros pobres – para a Amazônia e a construção de continentais rodovias e ferro- vias que levavam os trabalhadores para esse suposto Éden, ao mesmo tempo que escoavam suas produções para a Região Sudeste do Brasil e para o exterior. Vendia-se uma imagem fabulosa de possível prosperidade, de sonhos enriquecedores, de encontrar ouro em meio ao barro bruto. As atividades mineradoras – como o gigantesco e atroz garimpo da Serra Pelada –, os enormes plantios de monocultivo e a extração de madeira são cicatrizes dessa propaganda insustentável da Amazônia. Essas medidas extrativistas de cunho modernizador têm sido paulatinamente retomadas por um governo iconoclasta e genocida, com a exterminação da natureza e dos povos originários e de resistência como etapas do seu projeto de país. Simultaneamente a esses movimentos no século 20, formaram-se importantes núcleos de debate cultural nas capitais da Amazônia, a partir da década de 1920, como a Academia do Peixe Frito, cujos membros tinham diretas ligações com a recepção e a disseminação de valores modernistas no Pará.
    A produção dos membros da Academia exibe uma modernidade amazônica vista de dentro, estruturada por problematizações propostas pelo modernismo, mas preenchidas pela memória coletiva e pelo imaginário sociopolítico daquela época, naquele lugar. Refletia como a Amazônia poderia ser uma produtora de imagens modernas e não apenas uma observadora passiva. Belém do Grão-Pará, quarto romance do Ciclo do Extremo Norte, escrito por Dalcí- dio Jurandir, empreende a construção de um romance urbano, bem próximo aos ideais modernos de Charles Baudelaire (e, posteriormente, de Walter Benjamin), mas de um sujeito cercado por um universo caudaloso de imagens no Norte do Brasil.
    Pensar o moderno na Amazônia pode resultar em narrativas distópicas, com integrações cômicas entre imagens ultramecânicas e tecnológicas inseridas em paisagens de floresta densa e rios oceânicos. O contraste, inclusive, reforçava estereótipos dos dois polos. A inserção pungente (como um corpo estranho) de uma modernidade estrangeira parece adensar a atmosfera natural, como na viagem fluvial de Coração das Trevas, de Joseph Conrad. A névoa adensada, quase palpável, cria uma barreira visual e física entre o observante estrangeiro e a paisagem distante, fazendo com que até o que está próximo, ao alcance da visão clara em circunstâncias familiares, se torne completamente imprevisível e amedrontador. Muitas das imagens propõem um embate entre a civilidade barulhenta, sonora aos sons de suas sofisticadas engrenagens, e uma selvageria plácida que é perigosa justamente por ser silenciosa.

Moderno partido
É necessário lembrar, assim como o título da exposição aponta, que as categorizações estilísticas e historiográficas são da mesma natureza das ficções: convenções letradas, inventadas e implementadas por uma elite dominante, usualmente num momento posterior ao movimento realmente acontecer. Toda arte em seu tempo é contemporânea. Depois de algum tempo, com o distanciamento cronológico necessário, historiadores utilizam suas engenhosas ferramentas para a construção de um discurso, correntemente batizado após a sua morte.
    Raio-Que-o-Parta: Ficções do Moderno no Brasil é uma injeção de esperança no panorama artístico nacional, assegurando que as culturas brasileiras são sólidas, a ponto de resistirem aos violentos golpes que ten tam derrubá-las. Apresentar de forma festiva e revivalista uma crítica tão assertiva sobre a historiografia e a própria estruturação do povo brasileiro é um dos gestos mais generosos possíveis das grandes instituições culturais e artísticas do Brasil em tempos de tanta dificuldade.


Texto originalmente publicado na seLecT #53, em 15 de março de 2022