Shai Andrade, Marujada #5, 2013. 
2021.    Shai Andrade
Exposição “Novas Representações”

Texto crítico para a exposição de novos artistas representados da VERVE, em São Paulo

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Através de um aparato reflexivo e espelhado, como a câmera fotográfica, Shai Andrade (1992, Salvador - BA) propõe uma reflexão crítica sobre o passado, escrevendo uma narrativa visual para o futuro. Essa dualidade epistemológica é uma análise crítica sobre o apagamento das histórias negras, somada à tentativa de embranquecimento dos frutos da mestiçagem e dos hibridismos culturais que acontecem no Brasil. As genealogias meticulosamente listadas das famílias brancas demonstram uma artificialidade engessada, contrastada e combatida pelo movimento amplo das forças fotografadas por Andrade.
    Como um palimpsesto, pergaminho que é periodicamente raspado para dar lugar a um novo espaço de escritura, as histórias negras são continuamente vítimas de uma efemeridade das narrativas orais que as estruturam, perdidas em um sistema onde apenas o registro documental é tido como válido e consegue ser perene (o papel embranquecido, raspado, não seria um papel sem história?). Não nos enganemos: a iconoclastia da cultura negra é historicamente planejada.
    Durante anos, Andrade registrou, através da fotografia e do vídeo, performances e expressões de artistas negros que compartilham dos seus mesmos valores narrativos. Recentemente, Andrade se colocou como artista, escrevendo sua própria narrativa ao investigar sua genealogia familiar, cultural e espiritual, retratando cenas do cotidiano que combatem o exotismo estereotipado que parasita essas imagens. A artista não propõe apenas uma investigação individual isolada, mas inserida em uma estrutura articulada que envolve diversas vozes, discursos e realidades. Como num ritual de cura, Andrade movimenta e glorifica essas imagens, que bailam
e arrastam a luz nas suas fotografias, se comportando como entidades sempre presentes e que habitam entre o mundo da matéria e da ideia, reivindicando a divindade do humano e a humanidade do divino.
    Nas fotografias de Andrade, os movimentos de afirmação e negação referentes à identificação histórica se afirmam com protagonismo. A artista devolve aos seus retratados o olhar que sempre foi negligenciado, usurpado à força pelas dinâmicas que giram em torno do homem branco. Não há, a fotografia de Andrade, o “fingir que não se vê”. Além disso, a artista questiona os paradigmas patriarcais que direcionam as dinâmicas sociais e propõe uma estrutura matrofilial, centrada na figura feminina como raiz das memórias coletivas. A dinâmica entre mestre e aprendiz, portanto, torna-se uma hierarquia respeitosa de sacerdócio feminino.
    Andrade constitui, a partir dessas dinâmicas das narrativas intergeracionais, um patrimônio a ser herdado e resgatado. Em uma realidade em que quase tudo lhe foi tirado, a artista retoma a construção dessa herança cultural do povo negro, reconstruindo a casa, o templo, as estruturas, as luzes, as cores e a história.

Texto originalmente publicado na exposição “Novas Representações” da VERVE, de 2 de novembro de 2021 a 19 de fevereiro de 2022

Shai Andrade, Sem título, da série A cara do pai, 2021.

Shai Andrade, Sem título, da série A cara do pai, 2021.

Shai Andrade, Sem título, da série Anunciação, 2017.


Shai Andrade, Sem título, da série Anunciação, 2017.


Shai Andrade, Sem título, da série Anunciação, 2017.


Shai Andrade, Retrato de família, da série Retrato de família, 2019.


Shai Andrade, Quilombo bananal, da série Retrato de família, 2013.


Shai Andrade, Makota, da série Retrato de família, 2013.