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2021. Shai Andrade
Exposição “Novas Representações”
Texto crítico para a exposição de novos artistas representados da VERVE, em São Paulo
PDF (pt)
Texto crítico para a exposição de novos artistas representados da VERVE, em São Paulo
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Através de um aparato reflexivo e espelhado, como a câmera fotográfica, Shai Andrade (1992, Salvador - BA) propõe uma reflexão crítica sobre o passado, escrevendo uma narrativa visual para o futuro. Essa dualidade epistemológica é uma análise crítica sobre o apagamento das histórias negras, somada à tentativa de embranquecimento dos frutos da mestiçagem e dos hibridismos culturais que acontecem no Brasil. As genealogias meticulosamente listadas das famílias brancas demonstram uma artificialidade engessada, contrastada e combatida pelo movimento amplo das forças fotografadas por Andrade.
Como um palimpsesto, pergaminho que é periodicamente raspado para dar lugar a um novo espaço de escritura, as histórias negras são continuamente vítimas de uma efemeridade das narrativas orais que as estruturam, perdidas em um sistema onde apenas o registro documental é tido como válido e consegue ser perene (o papel embranquecido, raspado, não seria um papel sem história?). Não nos enganemos: a iconoclastia da cultura negra é historicamente planejada.
Durante anos, Andrade registrou, através da fotografia e do vídeo, performances e expressões de artistas negros que compartilham dos seus mesmos valores narrativos. Recentemente, Andrade se colocou como artista, escrevendo sua própria narrativa ao investigar sua genealogia familiar, cultural e espiritual, retratando cenas do cotidiano que combatem o exotismo estereotipado que parasita essas imagens. A artista não propõe apenas uma investigação individual isolada, mas inserida em uma estrutura articulada que envolve diversas vozes, discursos e realidades. Como num ritual de cura, Andrade movimenta e glorifica essas imagens, que bailam
e arrastam a luz nas suas fotografias, se comportando como entidades sempre presentes e que habitam entre o mundo da matéria e da ideia, reivindicando a divindade do humano e a humanidade do divino.
Nas fotografias de Andrade, os movimentos de afirmação e negação referentes à identificação histórica se afirmam com protagonismo. A artista devolve aos seus retratados o olhar que sempre foi negligenciado, usurpado à força pelas dinâmicas que giram em torno do homem branco. Não há, a fotografia de Andrade, o “fingir que não se vê”. Além disso, a artista questiona os paradigmas patriarcais que direcionam as dinâmicas sociais e propõe uma estrutura matrofilial, centrada na figura feminina como raiz das memórias coletivas. A dinâmica entre mestre e aprendiz, portanto, torna-se uma hierarquia respeitosa de sacerdócio feminino.
Andrade constitui, a partir dessas dinâmicas das narrativas intergeracionais, um patrimônio a ser herdado e resgatado. Em uma realidade em que quase tudo lhe foi tirado, a artista retoma a construção dessa herança cultural do povo negro, reconstruindo a casa, o templo, as estruturas, as luzes, as cores e a história.
Texto originalmente publicado na exposição “Novas Representações” da VERVE, de 2 de novembro de 2021 a 19 de fevereiro de 2022
Como um palimpsesto, pergaminho que é periodicamente raspado para dar lugar a um novo espaço de escritura, as histórias negras são continuamente vítimas de uma efemeridade das narrativas orais que as estruturam, perdidas em um sistema onde apenas o registro documental é tido como válido e consegue ser perene (o papel embranquecido, raspado, não seria um papel sem história?). Não nos enganemos: a iconoclastia da cultura negra é historicamente planejada.
Durante anos, Andrade registrou, através da fotografia e do vídeo, performances e expressões de artistas negros que compartilham dos seus mesmos valores narrativos. Recentemente, Andrade se colocou como artista, escrevendo sua própria narrativa ao investigar sua genealogia familiar, cultural e espiritual, retratando cenas do cotidiano que combatem o exotismo estereotipado que parasita essas imagens. A artista não propõe apenas uma investigação individual isolada, mas inserida em uma estrutura articulada que envolve diversas vozes, discursos e realidades. Como num ritual de cura, Andrade movimenta e glorifica essas imagens, que bailam
e arrastam a luz nas suas fotografias, se comportando como entidades sempre presentes e que habitam entre o mundo da matéria e da ideia, reivindicando a divindade do humano e a humanidade do divino.
Nas fotografias de Andrade, os movimentos de afirmação e negação referentes à identificação histórica se afirmam com protagonismo. A artista devolve aos seus retratados o olhar que sempre foi negligenciado, usurpado à força pelas dinâmicas que giram em torno do homem branco. Não há, a fotografia de Andrade, o “fingir que não se vê”. Além disso, a artista questiona os paradigmas patriarcais que direcionam as dinâmicas sociais e propõe uma estrutura matrofilial, centrada na figura feminina como raiz das memórias coletivas. A dinâmica entre mestre e aprendiz, portanto, torna-se uma hierarquia respeitosa de sacerdócio feminino.
Andrade constitui, a partir dessas dinâmicas das narrativas intergeracionais, um patrimônio a ser herdado e resgatado. Em uma realidade em que quase tudo lhe foi tirado, a artista retoma a construção dessa herança cultural do povo negro, reconstruindo a casa, o templo, as estruturas, as luzes, as cores e a história.
Texto originalmente publicado na exposição “Novas Representações” da VERVE, de 2 de novembro de 2021 a 19 de fevereiro de 2022
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Shai Andrade, Sem título, da série A cara do pai, 2021.
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Shai Andrade, Sem título, da série Anunciação, 2017.
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Shai Andrade, Sem título, da série Anunciação, 2017.
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Shai Andrade, Retrato de família, da série Retrato de família, 2019.
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Shai Andrade, Quilombo bananal, da série Retrato de família, 2013.
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Shai Andrade, Makota, da série Retrato de família, 2013.