Talles Lopes, Construção brasileira, 2022. Foto de Charlene Cabral.
Construção brasileira e a possibilidade de um modernismo tropical

Texto crítico publicado na revista seLecT sobre a pesquisa artística de Talles Lopes

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O artista goiano Talles Lopes questiona a tentativa de estabelecer um projeto moderno de país através da arquitetura brasileira

O artista goiano Talles Lopes, em sua instalação Construção Brasileira (2022), revisita uma iconografia brasileira e uma tradição de fotografia de arquitetura atreladas a um projeto de modernização de país. Composta por fotos impressas e diagramadas em uma estrutura metálica que combina elementos ortogonais e curvos, a instalação também dispõe de um conjunto de vasos de amianto com plantas usualmente utilizadas em projetos paisagísticos modernos no Brasil. O artista visual, formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Goiás, em 2020, participou recentemente do programa de residência da Delfina Foundation, em Londres, com o apoio do Instituto Inclusartiz, e apresentou Construção Brasileira na exposição coletiva Contar o Tempo, no Centro Universitário MariAntonia da USP, em 2022.
    A exposição estruturava-se em premissas provocativas e indagadoras sobre o pensamento do tempo, a partir do arsenal transdisciplinar disponível para atacar o problema na contemporaneidade, além dos eventos que propõem a revisão da contagem desse tempo no Brasil, como o Bicentenário da Independência do país e do Centenário de sua Semana de Arte Moderna, no Theatro Municipal, em São Paulo. A exposição coletiva aconteceu no Centro Universitário MariAntonia, até junho de 2022, reunindo obras de Adriana Moreno e Marina Zilbersztejn, Aline Motta, Carmela Gross, Clara Ianni, Diogo de Moraes, Dora Longo Bahia, Elilson, João Carlos Moreno de Sousa, Laís Myrrha, Marilá Dardot, Marcelo Moscheta, Rosana Paulino, Walmor Corrêa e do Núcleo Arqueológico MAE USP.
    Nas fotos expostas na instalação, Lopes apresenta reverberações – ou reaparições – das características colunas que compõem a fachada principal do Palácio da Alvorada, em Brasília, projetado por Oscar Niemeyer para a residência oficial da presidência da República do Brasil – além de ter sido a primeira construção em alvenaria oficialmente inaugurada em Brasília, em 1958. Esses elementos, nas edificações pesquisadas por Lopes, reaparecem em colunatas de alpendres, avarandados e marquises, balaustradas e em ornamentos aplicados ou pintados sobre paredes de fachada externa do que se entende por uma expressão arquitetônica popular, não-erudita – embora claramente conhecedora e atenta a importantes feitos arquitetônicos.
    A integração desses elementos – que se tornaram icônicos na arquitetura brasileira, na ordem do cânone ou da tratadística – em edificações populares demonstra uma espécie de desenvolvimento de uma civilização tropical, acentuando as discrepâncias entre as tentativas eurocêntricas de um empreendimento modernista pelo mundo e o efetivo desdobramento desse projeto de modernidade nos trópicos. A recepção – e operação – dessas tradições estrangeiras sucedem-se como uma segunda onda vinda ao Brasil pelo Atlântico, seguindo em suas devidas proporções a primeira investida colonialista no século 16.
    Em sua sólida pesquisa, o artista recolhe fotos por meio de pesquisas bibliográficas e digitais, pelo envio de fotos por pessoas familiarizadas com a pesquisa de Lopes, e por fotografias feitas pelo próprio artista, mapeando dezenas de edificações que replicam a coluna nas cinco grandes regiões brasileiras. Esse banco de imagens abastece – e assola – a pesquisa de Lopes nos últimos anos. Na instalação Construção Brasileira, o artista opta por apresentar apenas fotografias oriundas do Google Street View, acirrando a fricção entre imagens de diversas naturezas: uma internacional moderna, vendida ao exterior pelo Brasil e vice-versa; uma local, materializada nas ruas brasileiras; e uma digital e globalmente conectada, pautada pelas dinâmicas também importadas de uma política de vigilância.
    As fotografias exibidas na instalação apresentam uma efetiva construção brasileira, culturalmente híbrida, em uma fusão imagética entre a tradição considerada “erudita” e a prática popular. Revisitam símbolos canônicos na cultura arquitetônica de forma não-academicista, incorporando essas ostentadoras marcas de modernidade em edificações não-oficiais. O artista faz com que as fotos expostas na instalação tenham aspectos visuais próximos às que integraram a exposição Brazil Builds: Architecture New and Old, 1652-1942, de 1943, no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), aludindo provocativamente a uma construção artificial de história.
    O projeto moderno historiográfico imposto ao Brasil privilegiava, por meio da fotografia, a exibição imagética de uma construção narrativa que, ao mesmo tempo em que mostrava a solidez das tradições arquitetônicas de certos países, utilizava esse arcabouço como bojo justificativo da implementação de um projeto de modernidade. O Brasil, portanto, com “quatro séculos de história”, estaria apto para viver uma nova fase em sua civilização. Utilizava-se, dessa forma, a fotografia não só como símbolo de modernidade, mas como veículo eficaz e de fácil disseminação institucional ao redor do mundo do que supostamente acontecia no Brasil moderno.
    Além de apresentar as fotos de forma próxima à exibida na histórica exposição Brazil Builds: Architecture New and Old, 1652-1942, de 1943, no MoMA, o artista utiliza em sua obra a mesma tipografia que encima a estrutura da expografia do Pavilhão do Brasil na Expo 58 (Feira Mundial de Bruxelas, em 1958). A tradução oficial de Brazil Builds para o português resultou no nome Construção Brasileira, que Lopes utiliza como título de sua instalação. Neste trabalho, o artista segue utilizando a citação a esses eventos históricos como ferramenta de revisão: recria, também, o projeto expográfico do pavilhão brasileiro da Expo 58, projetado pelo arquiteto Sergio Bernardes, que apresentava a coluna do Palácio da Alvorada – projetada por Oscar Niemeyer – pela primeira vez em uma exposição europeia.
    George Everard Kidder Smith, responsável por boa parte das fotografias exibidas na exposição e no catálogo Brazil Builds do MoMA, foi um fotógrafo estadunidense de arquitetura, com sólida produção sobre o desenvolvimento arquitetônico modernista em países como a Suécia, a Itália e a Suíça – para a exposição Stockholm Builds, também no MoMa (1941); e para as publicações Switzerland Builds – Its Native and Modern Architecture (1950) e Italy Builds: Its Modern Architecture and Native Inheritance (1955), respectivamente. Foi autor do livro Source Book of American Architecture: 500 Notable Buildings from the 10th Century to the Present, originalmente publicado em 1981, uma espécie de compêndio imagético de edificações nos Estados Unidos. Percebe-se que o pensamento, não só de Kidder Smith, mas de outros protagonistas institucionais de sua época — como Philip L. Goodwin, membro do conselho e curador do MoMA –, buscava retratar a modernização de diferentes países através da arquitetura, incorporando – embora de maneira estreita – especificidades locais. Goodwin e Kidder Smith lideraram a organização da exposição Brazil Builds, em 1943.
    A obra de Lopes permite repensar o arco temporal estabelecido pela marcante exposição de 1943 – que propunha um recorte de 1652 a 1942 – e pelo seu subtítulo, que decretava que a cultura arquitetônica brasileira começava somente a partir do século 17. Essa secção cronológica reitera um pensamento colonialista que despreza as tradições culturais, artísticas e arquitetônicas dos povos originários do território brasileiro antes da invasão portuguesa. O próprio modus operandi do fotógrafo Kidder Smith, segundo o historiador Robert Elwall, seguia uma rapidez clássica dos artistas viajantes e dos naturalistas que, vindos de fora, buscavam retratar a fauna, a flora, a geografia e as pessoas do Brasil de forma vertiginosa, sem atentar para as heterogêneas complexidades brasileiras. Aproxima-se, inclusive, de uma abordagem etnográfica da fotografia, ao retratar o território do outro, como fizeram Felipe Augusto Fidanza e Pierre Verger. Estudos que compartilham de matrizes decoloniais – como Construção Brasileira, de Lopes – proporcionam revisões críticas quanto à compreensão temporal e historiográfica evolutiva, modelo epistemológico de origem europeia, que defende uma acumulação vetorial de conhecimento ao longo da história que levaria a sociedade ocidental moderna a ser cada dia mais evoluída.
    Lopes almeja apresentar uma genealogia verdadeiramente brasileira da arquitetura de seu país, que constrói de forma não-erudita, replica modismos que servem como distinções imagéticas e sociais e congrega o erudito e o popular em um amálgama indissociável, enraizado na história do país. A história do Brasil começaria, então, pela construção dos pilares do Palácio da Alvorada? Tal vertigem trans-histórica é, inclusive, propositalmente feita por Lopes: as colunas do Palácio do Alvorada foram construídas entre 1957 e 1958, portanto fora do arco temporal delimitado pela exposição Brazil Builds, que contemplava edificações até 1942. Essa confusão reafirma a ineficácia de moldes cronológicos modernos e positivistas para analisar as complexidades culturais brasileiras, além de criticar o estabelecimento de narrativas visuais estereotipadas a partir de um exotismo tacanho atrelado ao Brasil.
    Como combinar potencial de desenvolvimento moderno com a exuberância e a grandiosidade da fauna brasileira? Como lidar com esse excedente monumental e ornamental – nome com que Lopes sabiamente batizou sua obra Excedente Monumental, de 2022? A arquitetura brasileira propôs uma fusão entre estrutura e ornamento? O plano desenvolvimentista moderno preocupa-se com a sustentabilidade e com o descarte de resíduos sólidos de suas construções, problemática há muito resolvida pelas populações indígenas brasileiras em suas técnicas construtivas altamente sustentáveis? O que seria, portanto, desenvolvimento sustentável senão um regresso na compreensão e tempo da história do país, e não um incentivo ao fomento da indústria moderna? O trabalho de Lopes engendra, em múltiplas e rizomáticas questões, o embaralhamento de uma história estabelecida como oficial com narrativas sempre às margens da historiografia. Dessa forma, constrói-se um sistema imagético brasileiro pautado pelo colonialismo histórico, pelo modernismo e pelas práticas construtivas populares, reiterando um Brasil híbrido.
    Na instalação Construção Brasileira, Lopes dispõe de vários vasos de fibrocimento de amianto, projetados pelo designer suíço Willy Guhl e produzidos no Brasil pela companhia Eternit. Nos vasos, o artista exibe espécimes de plantas bastante utilizadas no paisagismo moderno, em uma operação de citação às vegetações utilizadas em importantes publicações e exposições da época sobre arquitetura moderna – como Philodendron Burle Marx, lírio-da-paz, antúrio branco e singônio, utilizados na exposição Brazil Builds no MoMA, como possíveis ambientadores de uma flora brasileira.
    Os vasos, com formas de parábolas, hipérboles e prismas retangulares, suspensos por discretos suportes metálicos, alinham-se à sinuosidade e à austeridade formal das propostas estéticas para a arquitetura de Brasília. As imagens de anúncio da venda dessa família de vasos no Brasil apresentam croquis da fachada do Palácio da Alvorada ao fundo, com modelos cujos nomes vão de “romano”, “grego” e “Suíça” a “ambiente” e “tropical”. Criar uma fricção concernente à sinuosidade da linha curva sem necessariamente adentrar em discussões sobre o ornamento na arquitetura moderna brasileira é uma das múltiplas questões engendradas por Lopes na instalação.
    O amianto, componente químico utilizado na construção desse tipo de vasos e em uma extensa gama de produtos de construção civil, teve seu comércio proibido no Brasil a partir de 2017, por sua alta toxicidade cancerígena quando inalado. Repensa-se, portanto, quão tóxicas são as práticas atreladas a uma modernidade apressada, forçada, baseada em uma produção industrial insustentável e em um manejo de recursos naturais extrativista. Sujeitar-se a práticas dessa natureza pode nos levar a considerar o preço que esses países estavam dispostos a pagar para implementar em sua estrutura um projeto de modernidade importado e nocivo.
    Até quando, portanto, repetir uma tradição problemática, imagética e materialmente? Entram em confronto a ideia de “Brasil, um país do futuro”, título do livro de Stefan Zweig originalmente publicado em 1941, e a de que “o Brasil tem um passado enorme pela frente”, como clamou Millôr Fernandes. Entender a cultura arquitetônica moderna brasileira é perceber que decadência e desenvolvimento andam de mãos dadas. Zweig defendia o Brasil como terra onde a civilização poderia se desenvolver pacífica após os traumas e máculas da segunda guerra mundial, assim como os europeus colonizadores encontraram no Brasil, no século 16, seu “Novo Mundo”, e como o governo brasileiro e as grandes indústrias extrativistas encontraram na Amazônia puro potencial desenvolvimentista. O Brasil é sempre terra de promessa de sonhos, paulatinamente esgotada.
    A obra de Lopes permite pensar as dinâmicas oscilantes e rizomáticas dos pólos irradiadores de modelos artísticos, demonstrando que lugares podem se comportar como centro e como periferia ao mesmo tempo, retratando uma ambiguidade inerente à contemporaneidade e às dinâmicas pós-coloniais. Brasília, por exemplo, a partir de uma ótica positivista e moderna, estaria em uma posição de periferia em relação à Europa, centro estabelecedor das diretrizes que pautaram o modernismo arquitetônico de forma hegemônica. Simultaneamente, entretanto, Brasília também se institui como centro, ao irradiar modelos resultantes da arquitetura moderna brasileira para outras cidades que os absorveram. As imagens e os sistemas estéticos atravessam, portanto, a capital do Brasil, sem restarem incólumes às operações e às pluralidades feitas nesse movimento, causando uma reverberação irrastreável que difunde essas imagens de forma capilar, ao mesmo tempo em que as recebe. Esse cabo-de-guerra que puxa em ambas as direções ao mesmo tempo ilustra os hibridismos culturais que pautam a produção cultural brasileira há séculos, sem esquecer de denunciar a imposição — por vezes sutil, por outras escancarada — de uma violência ideológica e iconológica eurocêntrica.


Texto originalmente publicado na seLecT, em 13 de julho de 2022


Talles Lopes, Construção brasileira, 2022. Fotos de Charlene Cabral.


Sem título, imagem de edificação em Bela Vista (MS), coletada pelo artista através do Google Street View.


Fotos da exposição Brazil Builds no MoMA NY (1943).


Estação para hidro-aviões, Areroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, Atilio Corrêa Lima, arquiteto, 1940, foto de George Everald Kidder Smith no catálogo da exposição Brazil Builds (1943) do MoMA NY (p. 151)

Talles Lopes, Excedente monumental, 2021. Foto de Ricardo Miyada.