2021. Flávio Nassar
Corpo Opaco é a estreia de Nassar na poesia, mesclando estéticas da poesia concreta, QR codes, métricas rígidas e haicais, adornando-as e floreando-as com belos laços de seda e pétalas de peônia e explodindo tudo depois em uma bomba textual anárquica. Flávio Augusto Sidrim Nassar, nascido em Belém do Pará, em 1952, é escritor, arquiteto, urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Este livro é o melhor dos prédios que Nassar já construiu.
Nassar é um contador de histórias de fantasmas para gente grande. Coordena o maior órgão de pesquisa sobre o arquiteto bolonhês Antônio José Landi (1713-1791) no mundo, embora seja convicto de que a preservação do patrimônio arquitetônico em Belém é impossível. No capítulo “Cidades opacas”, digere e expele imagens e textos sobre cidades idílicas, utópicas e pavorosas, sob o ritmo das cidades invisíveis de Italo Calvino e a decadência indiscutível defendida por Nassar sobre a cidade de Belém, uma cidade na Amazônia sempre às margens da modernidade, sempre uma tentativa fadada ao fracasso, um sempre “quase”. É recorrentemente chamado por jornais da cidade quando o assunto é de natureza crítica, como colapso no sistema de transporte público, alagamentos em assentamentos precários e a presença do frenético comércio ambulante no centro histórico de Belém. There’s no more hope, but crying is a waste of time.
Enquanto E. M. de Castro de Melo anuncia “o fim visual do século XX”, Nassar anuncia o fim dos tempos, o Armagedon, o apocalipse, o fim de tudo – e o faz também em seu texto, deleitando-se, ruminando, vomitando e repetindo o processo. O homem do fim do mundo – e do início de si – que é descrente da beleza pura, do sublime absoluto e jocosamente brinca com palavras-imagens. É necessário apontar que tal descaso só é possível com agudíssima erudição. Sua biblioteca é mítica, atlântica, borgeana-joyceana. Fala catalão e córsico, e possivelmente pediria para recitar o Cântico dos Cânticos como suas últimas palavras antes de ir à forca ou à guilhotina – onde a corda seria uma cobra e a lâmina seria uma vitória-régia. Ao subir aos céus, cuspiria lá de cima, como o vizinho velho que fura a bola das crianças com faca quente e corta suas pipas. Como Eça de Queiroz, tem a plena fé de que não se pode acreditar em nada:
“Acreditei em futebol
não acredito mais
acreditei na humanidade
na santíssima trindade
não acredito mais
acreditei no brasil
na ciência
na virtude da paciência
eu não acredito em yoko
eu não acredito em mim” (NASSAR, 2019, p. 14)
Absteve-se da fé em Deus e nos homens há tempos, e procura nesse desassossego estético pistas satíricas e as joga como merda no ventilador em outdoor em via pública, para todo mundo rir. Cultiva e caça essas gemas escatológicas como um tesouro – o único possível neste plano. [Confessou-me, secretamente, às vésperas do lançamento de seu livro, aos seus 67 anos de idade, que estava com vergonha de que sua mãe o lesse por ter escrito palavras como “cu”, “orgasmo”, “foder” e “putaria”.] Flerta com a liberdade dionisíaca depois de ter sido aprisionado por muito tempo por uma esperança romântica. Em seu entrópico Corpo Opaco, Nassar demonstra a estupidez humana no mais alto grau de maturidade poética.
POST-SCRIPTUM (ou a resenha em si):
1.
EnCharcado de água barrenta
feito jiboia que engole um (peixe-)boi
(não)
saio deste corpo opaco
sem saber
se saí mais limpo ou mais sujo que entrei
se me enterrei na água ou me molhei de terra
se fui batizado ou atolado
sem ar
o homem do fim do mundo
caminha sobre a áGuamá
segura minha cabeça
debaixo da água turva
baptismal
(ainda crê?)
2.
escrito em pena de ave preta
que sobrevoa a carcaça deste corpo opaco
sobre a mesa da ceia
ao lado da mãe que chora
a perda do filho
a eterna espera
a revelação
o manto
o alívio
(tudo que acreditavas que era trans-lúcido é opaco)
beija-me com os lábios de tua boca
be
lém
a ponta da língua toca o palato
amém
3.
antídoto da antígona
anticorpo antidédalo
tratado de arquitextura para um barroco proto-apocalíptico
metafísica canibal
braS/Zil
ama só de raiva
parla
Texto originalmente publicado no Anuário de Literatura (UFSC), v. 26, em dezembro de 2021; e no periódico Resenhas Online, do portal Vitruvius, n. 239.04, em novembro de 2021.
Nassar é um contador de histórias de fantasmas para gente grande. Coordena o maior órgão de pesquisa sobre o arquiteto bolonhês Antônio José Landi (1713-1791) no mundo, embora seja convicto de que a preservação do patrimônio arquitetônico em Belém é impossível. No capítulo “Cidades opacas”, digere e expele imagens e textos sobre cidades idílicas, utópicas e pavorosas, sob o ritmo das cidades invisíveis de Italo Calvino e a decadência indiscutível defendida por Nassar sobre a cidade de Belém, uma cidade na Amazônia sempre às margens da modernidade, sempre uma tentativa fadada ao fracasso, um sempre “quase”. É recorrentemente chamado por jornais da cidade quando o assunto é de natureza crítica, como colapso no sistema de transporte público, alagamentos em assentamentos precários e a presença do frenético comércio ambulante no centro histórico de Belém. There’s no more hope, but crying is a waste of time.
Enquanto E. M. de Castro de Melo anuncia “o fim visual do século XX”, Nassar anuncia o fim dos tempos, o Armagedon, o apocalipse, o fim de tudo – e o faz também em seu texto, deleitando-se, ruminando, vomitando e repetindo o processo. O homem do fim do mundo – e do início de si – que é descrente da beleza pura, do sublime absoluto e jocosamente brinca com palavras-imagens. É necessário apontar que tal descaso só é possível com agudíssima erudição. Sua biblioteca é mítica, atlântica, borgeana-joyceana. Fala catalão e córsico, e possivelmente pediria para recitar o Cântico dos Cânticos como suas últimas palavras antes de ir à forca ou à guilhotina – onde a corda seria uma cobra e a lâmina seria uma vitória-régia. Ao subir aos céus, cuspiria lá de cima, como o vizinho velho que fura a bola das crianças com faca quente e corta suas pipas. Como Eça de Queiroz, tem a plena fé de que não se pode acreditar em nada:
“Acreditei em futebol
não acredito mais
acreditei na humanidade
na santíssima trindade
não acredito mais
acreditei no brasil
na ciência
na virtude da paciência
eu não acredito em yoko
eu não acredito em mim” (NASSAR, 2019, p. 14)
Absteve-se da fé em Deus e nos homens há tempos, e procura nesse desassossego estético pistas satíricas e as joga como merda no ventilador em outdoor em via pública, para todo mundo rir. Cultiva e caça essas gemas escatológicas como um tesouro – o único possível neste plano. [Confessou-me, secretamente, às vésperas do lançamento de seu livro, aos seus 67 anos de idade, que estava com vergonha de que sua mãe o lesse por ter escrito palavras como “cu”, “orgasmo”, “foder” e “putaria”.] Flerta com a liberdade dionisíaca depois de ter sido aprisionado por muito tempo por uma esperança romântica. Em seu entrópico Corpo Opaco, Nassar demonstra a estupidez humana no mais alto grau de maturidade poética.
1.
EnCharcado de água barrenta
feito jiboia que engole um (peixe-)boi
(não)
saio deste corpo opaco
sem saber
se saí mais limpo ou mais sujo que entrei
se me enterrei na água ou me molhei de terra
se fui batizado ou atolado
sem ar
o homem do fim do mundo
caminha sobre a áGuamá
segura minha cabeça
debaixo da água turva
baptismal
(ainda crê?)
2.
escrito em pena de ave preta
que sobrevoa a carcaça deste corpo opaco
sobre a mesa da ceia
ao lado da mãe que chora
a perda do filho
a eterna espera
a revelação
o manto
o alívio
(tudo que acreditavas que era trans-lúcido é opaco)
beija-me com os lábios de tua boca
be
lém
a ponta da língua toca o palato
amém
3.
antídoto da antígona
anticorpo antidédalo
tratado de arquitextura para um barroco proto-apocalíptico
metafísica canibal
braS/Zil
ama só de raiva
parla
Texto originalmente publicado no Anuário de Literatura (UFSC), v. 26, em dezembro de 2021; e no periódico Resenhas Online, do portal Vitruvius, n. 239.04, em novembro de 2021.