Ubi Bava, Você é a composição, da série Homenagem ao espectador, 1976. Foto EstudioEmObra.
O outro, o mesmo: deformação e informação em Ubi Bava
Texto crítico publicado na revista seLecT sobre a série Homenagem ao Espectador, de Ubi Bava
PDF (pt)
Texto crítico publicado na revista seLecT sobre a série Homenagem ao Espectador, de Ubi Bava
PDF (pt)
Série
dedicada pelo artista ao espectador permite a leitura da complexidade
contemporânea a partir de um sistema transdisciplinar
Jorge Luis Borges publicou, em 1964, uma coletânea de poemas chamada “O Outro, o Mesmo”. Esse livro é um exemplar das vastas e profundas discussões propostas pelo escritor argentino acerca de um modernismo sul-americano, em que figuram temas como o espelho, o híbrido, os labirintos, os sonhos, a memória e o tempo. Borges não só estava atento às discussões que se passavam no resto do mundo nas diversas áreas do pensamento, mas era atencioso ao que acontecia em seu próprio território, e inovador na proposição de suas ideias. A partir desse contexto teórico e histórico muito próximo, é possível traçar um paralelo entre Borges e Ubi Bava (1915-1988); e entre “O Outro, o Mesmo” e a série “Homenagem ao Espectador”, do artista plástico brasileiro.
Reconhecido como um dos principais nomes do construtivismo e da abstração geométrica no Brasil e pelo pioneirismo na arte cinética, Ubi Bava tornou-se célebre com a sua “Homenagem ao Espectador”, desenvolvida ao longo da década de 1970. Manipulando conceitos da arte e da semiótica, e experimentando materiais como chapas refletoras de acrílico e espelhos em forma plana ou de parábola, o artista compõe um arsenal importantíssimo para a discussão da arte moderna brasileira. A série tem como protagonistas os elementos espelhados e, por extensão, o espectador refletido nas superfícies da obra.
Bava argumenta, no prefácio de sua tese de concurso para a cátedra de Desenho Artístico na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, que a sua intenção não é abordar o desenho de forma puramente objetiva e prática, mas “desenvolver a observação”. A expressão utilizada pelo artista em 1949 demonstra um aspecto pouco materializado, à época, nas obras de artes plásticas: o tempo.
O acesso à documentação foi cedido pelo Projeto Ubi Bava, que tramita a doação de centenas de itens arquivísticos sobre o artista para o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo. Para Teodoro Bava, diretor do Projeto, a disseminação de informações sobre o artista “também possibilita preencher uma vacância historiográfica e analítica”, como relata à seLecT.
Estado de espírito de espectador
Para Bava, a experiência do espectador em uma “observação desenvolvida” incorpora a dimensão temporal a seu trabalho. Em muitas obras do artista, mas sobretudo no conjunto feito com espelhos parabólicos, o tempo e o espaço são fatores combinados e oscilantes: num primeiro momento, pode haver uma surpresa atrativa – ou no mínimo indagadora – sobre o trabalho, que convida o espectador a se aproximar. Nesse chamado arquitetado por Bava, o observador não se move apenas no espaço, mas se desloca no tempo – o que se aproxima dos conceitos bergsonianos de “duração” e “intuição”.
O espectador se depara, então, com inúmeras imagens refletidas e deformadas de si mesmo. Bava, na tese supracitada, aborda tais deformações – de forma cautelosa, claramente assolado pelo purismo formal corrente que já não respondia às suas inquietações teóricas –, mencionando que, entre os grandes artistas, não “se encontra o mais leve indício de arbitrariedade ou extravagância” quando utilizam a deformação em suas obras. “Tudo está pensado e repensado; os elementos deformados têm entre si uma justa relação e, por sua vez, cada elemento está ligado ao outro pela mesma relação. [...] E pareceria paradoxal, sem esta explicação, se disséssemos que há harmonia na deformação”, prossegue.
É importante perceber, na obra de Bava, momentos de encontro entre duas estruturas de pensamento, dois prismas para analisar a ontologia das informações: um primeiro positivista, próximo aos pensamentos concretista e formalista; e um outro fenomenológico, abarcando preocupações auráticas e sensoriais. A integração dessas duas visões, embora precedam metodologias de transdisciplinaridade na teoria da arte, é determinante em seu trabalho.
Como um esteta de meados do século XX, a partir de uma perspectiva historiográfica oriunda sobretudo de Johann Winckelmann e Heinrich Wöfflin, Ubi Bava se debruça sobre os grandes conceitos de “arte”, “natureza”, “artista”, “gosto”; sobre as divisões das expressões culturais em pintura, escultura, música e poesia; refletindo uma estrutura positivista corrente no construtivismo empregado em algumas de suas obras, alinhada à precisão de execução por meio do conhecimento técnico. Em outras situações, demonstra a preocupação com o estado de espírito do espectador perante a obra a ser observada.
Em muitos momentos, percebe-se o anseio por agarrar algo que foge à estrutura positivista em que está preso na escrita da tese: esses momentos são ancorados em citações de Sigmund Freud e Henri Bergson, por exemplo, que fogem de uma matriz estética formalista. Frequentemente se refere a aspectos artísticos “inexprimíveis em conceitos”, ou à “incapacidade que temos em compreender a natureza do belo”. Além dessas passagens textuais, a preocupação de Bava com o estado de espírito do observador diante das obras demonstra a necessidade de um sistema de pensamento transdisciplinar, como os que nos foram legados por Aby Warburg, Erwin Panofsky e Ernst Gombrich.
A integração do espectador, a percepção de um espaço deformado e a incorporação do tempo no trabalho de Bava permite reconhecer uma sensibilidade multifatorial por parte do artista, especialmente em um alargamento disciplinar sobre o contexto em que ele estava inserido e nas discussões que fomentava a partir do seu trabalho.
Diferença e repetição
Para auxiliar na leitura da obra de Bava, pode-se evocar as contribuições de Gilles Deleuze – que inclusive escreveu importantes livros analisando a obra de Bergson. No diz respeito à relação entre as partes a que o artista se refere, Deleuze demonstra que esses dois fenômenos não são dinâmicas opostas e antagônicas, mas que é possível uni-las de maneira ambígua, como o faz Bava ao apresentar seus espelhos parabólicos.
Ao observar as obras da série “Homenagem ao espectador”, o homenageado tem a impressão de que sua imagem é repetida várias vezes: essa repetição, entretanto, anda de mãos dadas com a diferença, já que a imagem é ligeiramente alterada em cada um dos espelhos, por suas singulares posições no espaço, além de ser deformada. Essa deformação, inerente às imagens refletidas pelos espelhos parabólicos convexos utilizados por Bava, que aumentam exponencialmente o que está próximo do centro, conectam-se a uma defesa de que se torna obsoleto almejar compreender a complexidade da contemporaneidade através da linha reta, reducionista, mas sim por meio da dobra, enigmática, como os espelhos da “Homenagem ao Espectador”.
A duração, tão cara a Bava, é o tempo de se dispor fruindo as múltiplas experiências cambiantes proporcionadas pelo objeto artístico, fazendo com que o observador não observe apenas a obra, ou apenas a imagem refletida de si mesmo – como duas entidades autônomas –, mas ver-se através da obra. Pensar dessa forma não induz apenas a uma fenomenologia da arte, intrínseca à produção de Bava, mas à inerência da observação e do tempo como componente fundamental para a fruição do objeto artístico.
Apesar da conexão formal, feita pelo artista na escolha de seus espelhos parabólicos nessa série, os escritos de Bava demonstram um frescor pouco usual às discussões correntes na década de 1970 em São Paulo.
A utilização de um objeto óptico, inerente ao campo da física, para discutir as relações humanas de seu tempo exibe uma preocupação holística quanto às estruturas epistemológicas sobre o conhecimento e a informação. Diversos sistemas abrangentes de pensamento, que fundem áreas até então inagregáveis – como as “humanas” e as “exatas” –, começaram por questionamentos nos campos das ciências naturais, como a teoria da relatividade, as dobras no espaço-tempo, a física quântica e a teoria das cordas. Tais propostas, embora nascidas em âmbitos laboratoriais, muito contribuíram para pensar as ciências humanas em possibilidades outras, que fogem do binarismo que exclui pluralidades, da limitante necessidade de nomenclatura de todas as coisas e de uma impositiva demonstração cartesiana de todas as problemáticas. A utilização de sistemas de informação e de pensamento que operam sob parâmetros limitantes geram apenas respostas da mesma natureza, atualmente ineficazes: se algo é deformado, a partir de uma epistemologia não mais capaz, essa deformação é um progresso.
Texto originalmente publicado na edição #54 da revista seLecT, em 11 de junho de 2022
Jorge Luis Borges publicou, em 1964, uma coletânea de poemas chamada “O Outro, o Mesmo”. Esse livro é um exemplar das vastas e profundas discussões propostas pelo escritor argentino acerca de um modernismo sul-americano, em que figuram temas como o espelho, o híbrido, os labirintos, os sonhos, a memória e o tempo. Borges não só estava atento às discussões que se passavam no resto do mundo nas diversas áreas do pensamento, mas era atencioso ao que acontecia em seu próprio território, e inovador na proposição de suas ideias. A partir desse contexto teórico e histórico muito próximo, é possível traçar um paralelo entre Borges e Ubi Bava (1915-1988); e entre “O Outro, o Mesmo” e a série “Homenagem ao Espectador”, do artista plástico brasileiro.
Reconhecido como um dos principais nomes do construtivismo e da abstração geométrica no Brasil e pelo pioneirismo na arte cinética, Ubi Bava tornou-se célebre com a sua “Homenagem ao Espectador”, desenvolvida ao longo da década de 1970. Manipulando conceitos da arte e da semiótica, e experimentando materiais como chapas refletoras de acrílico e espelhos em forma plana ou de parábola, o artista compõe um arsenal importantíssimo para a discussão da arte moderna brasileira. A série tem como protagonistas os elementos espelhados e, por extensão, o espectador refletido nas superfícies da obra.
Bava argumenta, no prefácio de sua tese de concurso para a cátedra de Desenho Artístico na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, que a sua intenção não é abordar o desenho de forma puramente objetiva e prática, mas “desenvolver a observação”. A expressão utilizada pelo artista em 1949 demonstra um aspecto pouco materializado, à época, nas obras de artes plásticas: o tempo.
O acesso à documentação foi cedido pelo Projeto Ubi Bava, que tramita a doação de centenas de itens arquivísticos sobre o artista para o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo. Para Teodoro Bava, diretor do Projeto, a disseminação de informações sobre o artista “também possibilita preencher uma vacância historiográfica e analítica”, como relata à seLecT.
Estado de espírito de espectador
Para Bava, a experiência do espectador em uma “observação desenvolvida” incorpora a dimensão temporal a seu trabalho. Em muitas obras do artista, mas sobretudo no conjunto feito com espelhos parabólicos, o tempo e o espaço são fatores combinados e oscilantes: num primeiro momento, pode haver uma surpresa atrativa – ou no mínimo indagadora – sobre o trabalho, que convida o espectador a se aproximar. Nesse chamado arquitetado por Bava, o observador não se move apenas no espaço, mas se desloca no tempo – o que se aproxima dos conceitos bergsonianos de “duração” e “intuição”.
O espectador se depara, então, com inúmeras imagens refletidas e deformadas de si mesmo. Bava, na tese supracitada, aborda tais deformações – de forma cautelosa, claramente assolado pelo purismo formal corrente que já não respondia às suas inquietações teóricas –, mencionando que, entre os grandes artistas, não “se encontra o mais leve indício de arbitrariedade ou extravagância” quando utilizam a deformação em suas obras. “Tudo está pensado e repensado; os elementos deformados têm entre si uma justa relação e, por sua vez, cada elemento está ligado ao outro pela mesma relação. [...] E pareceria paradoxal, sem esta explicação, se disséssemos que há harmonia na deformação”, prossegue.
É importante perceber, na obra de Bava, momentos de encontro entre duas estruturas de pensamento, dois prismas para analisar a ontologia das informações: um primeiro positivista, próximo aos pensamentos concretista e formalista; e um outro fenomenológico, abarcando preocupações auráticas e sensoriais. A integração dessas duas visões, embora precedam metodologias de transdisciplinaridade na teoria da arte, é determinante em seu trabalho.
Como um esteta de meados do século XX, a partir de uma perspectiva historiográfica oriunda sobretudo de Johann Winckelmann e Heinrich Wöfflin, Ubi Bava se debruça sobre os grandes conceitos de “arte”, “natureza”, “artista”, “gosto”; sobre as divisões das expressões culturais em pintura, escultura, música e poesia; refletindo uma estrutura positivista corrente no construtivismo empregado em algumas de suas obras, alinhada à precisão de execução por meio do conhecimento técnico. Em outras situações, demonstra a preocupação com o estado de espírito do espectador perante a obra a ser observada.
Em muitos momentos, percebe-se o anseio por agarrar algo que foge à estrutura positivista em que está preso na escrita da tese: esses momentos são ancorados em citações de Sigmund Freud e Henri Bergson, por exemplo, que fogem de uma matriz estética formalista. Frequentemente se refere a aspectos artísticos “inexprimíveis em conceitos”, ou à “incapacidade que temos em compreender a natureza do belo”. Além dessas passagens textuais, a preocupação de Bava com o estado de espírito do observador diante das obras demonstra a necessidade de um sistema de pensamento transdisciplinar, como os que nos foram legados por Aby Warburg, Erwin Panofsky e Ernst Gombrich.
A integração do espectador, a percepção de um espaço deformado e a incorporação do tempo no trabalho de Bava permite reconhecer uma sensibilidade multifatorial por parte do artista, especialmente em um alargamento disciplinar sobre o contexto em que ele estava inserido e nas discussões que fomentava a partir do seu trabalho.
Diferença e repetição
Para auxiliar na leitura da obra de Bava, pode-se evocar as contribuições de Gilles Deleuze – que inclusive escreveu importantes livros analisando a obra de Bergson. No diz respeito à relação entre as partes a que o artista se refere, Deleuze demonstra que esses dois fenômenos não são dinâmicas opostas e antagônicas, mas que é possível uni-las de maneira ambígua, como o faz Bava ao apresentar seus espelhos parabólicos.
Ao observar as obras da série “Homenagem ao espectador”, o homenageado tem a impressão de que sua imagem é repetida várias vezes: essa repetição, entretanto, anda de mãos dadas com a diferença, já que a imagem é ligeiramente alterada em cada um dos espelhos, por suas singulares posições no espaço, além de ser deformada. Essa deformação, inerente às imagens refletidas pelos espelhos parabólicos convexos utilizados por Bava, que aumentam exponencialmente o que está próximo do centro, conectam-se a uma defesa de que se torna obsoleto almejar compreender a complexidade da contemporaneidade através da linha reta, reducionista, mas sim por meio da dobra, enigmática, como os espelhos da “Homenagem ao Espectador”.
A duração, tão cara a Bava, é o tempo de se dispor fruindo as múltiplas experiências cambiantes proporcionadas pelo objeto artístico, fazendo com que o observador não observe apenas a obra, ou apenas a imagem refletida de si mesmo – como duas entidades autônomas –, mas ver-se através da obra. Pensar dessa forma não induz apenas a uma fenomenologia da arte, intrínseca à produção de Bava, mas à inerência da observação e do tempo como componente fundamental para a fruição do objeto artístico.
Apesar da conexão formal, feita pelo artista na escolha de seus espelhos parabólicos nessa série, os escritos de Bava demonstram um frescor pouco usual às discussões correntes na década de 1970 em São Paulo.
A utilização de um objeto óptico, inerente ao campo da física, para discutir as relações humanas de seu tempo exibe uma preocupação holística quanto às estruturas epistemológicas sobre o conhecimento e a informação. Diversos sistemas abrangentes de pensamento, que fundem áreas até então inagregáveis – como as “humanas” e as “exatas” –, começaram por questionamentos nos campos das ciências naturais, como a teoria da relatividade, as dobras no espaço-tempo, a física quântica e a teoria das cordas. Tais propostas, embora nascidas em âmbitos laboratoriais, muito contribuíram para pensar as ciências humanas em possibilidades outras, que fogem do binarismo que exclui pluralidades, da limitante necessidade de nomenclatura de todas as coisas e de uma impositiva demonstração cartesiana de todas as problemáticas. A utilização de sistemas de informação e de pensamento que operam sob parâmetros limitantes geram apenas respostas da mesma natureza, atualmente ineficazes: se algo é deformado, a partir de uma epistemologia não mais capaz, essa deformação é um progresso.
Texto originalmente publicado na edição #54 da revista seLecT, em 11 de junho de 2022
Ubi Bava, Sem título, da série Homenagem ao espectador, 1975.