Silêncio Coletivo, Anunciação, 2022.
Exposição “Anunciação”
Texto crítico para a exposição individual do Silêncio Coletivo no HANGAR, em Lisboa
WEB
PRESS (seLecT)
Texto crítico para a exposição individual do Silêncio Coletivo no HANGAR, em Lisboa
WEB
PRESS (seLecT)
Anunciação (ou História do Futuro)
Brasil: vermelho cor de brasa. Rompante de sangue à cabeça, estado de alerta e vigília, sangue que dá e tira a vida. Buscando reaver a memória dos que foram e serão deitados ao chão pelos que permanecem erigidos, o Silêncio Coletivo apresenta Anunciação, inédita exposição-instalação no HANGAR, em Lisboa.
O duo, formado pelos artistas brasileiros Jaime Lauriano e Igor Vidor, reveste as paredes do espaço expositivo com a repetição de fotos de levantes e monumentos em filtro vermelho. Dispostos na instalação, há recortes de imagens planificadas de monumentos escorados, em posição dúbia entre a queda e a ascensão, além de um conjunto de cerâmicas religiosas do candomblé.
Para orquestrar a revisita ao episódio bíblico da Anunciação pelo Silêncio Coletivo, declaram-se obsoletos os modelos iconográficos proporcionados pela tradição cristã colonial. É importante começar ressaltando a complexidade temporal desse episódio: no mesmo instante em que acontece a cena plácida em que o arcanjo Gabriel anuncia a vinda do filho de Deus através do ventre imaculado de Maria, decreta-se também o estarrecedor apregoamento do corpo de Jesus na cruz, que pende morto, fincado pelas mãos atravessadas. A cruz, monumento de exibição pública da morte, torna-se símbolo de vida. Dessa forma, a anunciação da vida é a mesma que a da morte: nascerá o que morrerá por nós.
Nesse jogo de contradições, Lauriano e Vidor propõem a construção de um panteão condenatório, utilizando-se dos próprios mecanismos da memória para um planejado esquecimento – ou é este esquecimento planejado que consubstancia um calculado projeto de memória? Essa Anunciação, que profetiza ruínas e anuncia a chegada de cicatrizes já seculares, subverte a temporalidade convencionada e propõe a gênese futura de algo que já fora – ou deveria ser – aniquilado. Nesta instalação, a criação e a destruição não são forças que se anulam, mas vetores que questionam, em seu próprio choque, os motivos de algo ser criado ou destruído. A incontestabilidade desse tempo – numa resignação resultante em um problemático silêncio coletivo – se assemelha à da história colonial que, embora engendre múltiplas leituras, muitas delas contraditórias, se blinda a um revisionismo e dispara a narrativa como eterna, incólume e encapsulada.
O Silêncio Coletivo já expõe esse paradoxo pautado pelos ideais cristãos e coloniais na obra Do pó ao pó, de 2022, em sua última exposição em Portugal. Paradoxo esse minuciosamente analisado pelo padre português Antônio Vieira – de cujo livro póstumo é roubado parte do título do presente texto – em seu Sermão da Quarta-Feira de Cinzas de 1672. Vieira argumenta acerca da complexidade e da dificuldade de entendimento do texto bíblico que anuncia que do pó viemos, pó somos e ao pó retornaremos. Como, portanto, nos converteremos a algo que já somos? E de que forma compreender que somos pó no presente, quando o que os olhos denunciam é que somos carne?
Esse enigma temporal seria dado como caso resolvido pela cosmovisão yorubá do candomblé, que compreende as questões de ancestralidade como dispositivos de presença e de continuidade futura. A partir dessa matriz de pensamento, somos libertos por um alargamento das compreensões sobre temporalidade, ancestralidade e materialidade, em comparação às limitantes categorizações eurocêntricas que nos foram ditadas.
Uma das formas mais eficazes e provocativas de declarar a obsolescência de ideias e imagens não é descartá-las, mas virá-las do avesso. Na Anunciação, são repetidas imagens de monumentos controversos, esvaziando-os em sua materialidade e os dotando de outro sentido ao inserir suas representações em contexto questionador. Os artistas confrontam uma tradição eurocêntrica de que esvaziar a matéria é também esvaziar o sentido; enquanto na visão yorubá, a ancestralidade transborda o sentido da matéria, colocando-a em um espaço de potencialidade. Essa compreensão das relações entre o sentido e a matéria, portanto, pode nos esclarecer a leitura de que um ato aparentemente iconoclasta é, na verdade, a proposição de uma (nova) história há muito negligenciada, dissonante da que sempre nos foi imposta a contragosto.
Nesse labirinto de imagens bidimensionais de fundo vermelho, há um conjunto de vasos religiosos em cerâmica crua, chamados de quartinhas e quartilhões. Esse corpo estranho às imagens que o cercam é aparentemente ingênuo, mas profundamente poderoso, como um cavalo de Troia: são objetos de cura do candomblé que trazem a própria pureza como elemento impuro numa cultura colonialista que se diz impoluta. Esses receptáculos contêm água – conteúdo e continente ao mesmo tempo –, que lentamente evapora pela porosidade da cerâmica e precisa de reabastecimento e atenção constantes. A água contida nas cerâmicas é lentamente bebida pelas entidades a que são ofertadas, sendo a evaporação um ritual de cura transbordante. Enquanto as imagens planas esvaziadas de volume dos monumentos pétreos almejam a robustez de uma história sólida, imbatível e perene, as quartinhas e os quartilhões relacionam-se às ideias de substância, elemento, fragilidade e efemeridade. Estrategicamente instaladas, colocam-se em território inimigo e promovem a cura, lutando armadas com outras epistemes.
A instalação se relaciona com a insurgente onda de contestação de monumentos que homenageiam eventos e pessoas com posturas hoje entendidas como criminosas, mas normalizadas por séculos através de um sofisticado dispositivo de manutenção de poder. Esse estratagema político insere uma cíclica conduta de permissibilidade perante essas homenagens brutais, que laureiam na terra ferida os incisores das próprias cicatrizes, em uma planejada geografia do poder da memória. A derrubada de uma série de monumentos pelo mundo catalisada pela morte de George Floyd, em 2020, e o ateamento da estátua dedicada ao bandeirante paulista Borba Gato pelo grupo Revolução Periférica, em São Paulo, são exemplos de vivos levantes. Essas insurreições não buscam remoer um passado colonial, inapagável e impagável, mas conter a presença sintomática desse violento passado no presente e no futuro – afinal, todo levante é uma queda.
Anunciação é assente em terras cuja história é inflamada mas não incômoda, onde a inércia do tempo e a dormência dos levantes permitem que centenas de pelourinhos continuem intactos em solo luso, rememorados como altivos patrimônios culturais da nação heroica em uma lógica celebrativa. Essas colunas em que escravos negros eram ufanamente amarrados e açoitados são, por vezes, travestidas como monumentos que homenageiam as navegações ou obeliscos régios, sem perceber que sua nova camuflagem, na verdade, é um balangandã que acentua e alerta para as dinâmicas macro-históricas que fincaram ali aqueles pelourinhos. Sem embargo, permanecem de pé. Enquanto isso, há poucos dias, integrantes da Polícia Civil do Rio de Janeiro demoliram um memorial às 28 vítimas mortas na chacina do Jacarezinho, invadindo a comunidade com veículos blindados e apagando a memória de quem já haviam aniquilado o corpo. Talvez a Anunciação seja um dispositivo último de reflexão: mostra-se apenas o que já é presente, sem alterar nada, e deixa-se encarar com seu próprio reflexo por tempo suficiente para que se torne insuportável.
“Anunciar” conecta-se semanticamente à ideia de futuro, de profetizar ou alertar sobre algo que está por vir; enquanto “denunciar”, nesse mesmo campo de batalha das palavras, atesta algo que já teve sua origem no passado. Lauriano e Vidor friccionam os atos de anunciar e de denunciar até que se tornem fenômenos híbridos: boa-nova e mau agouro, profecia e diagnóstico, bênção e maldição, anúncio e denúncia. São uma dupla e esse trabalho só pode acontecer em dupla, em diálogo constante, em dois tempos, hoje e sempre: na revisitação de uma história brasileira decolonial, é sempre impossível ser somente um.
/
Annunciation (or History of the Future)
Brazil: ember-red. Rush of blood to the head, alert and vigilant state, life-giving and life-taking blood. Seeking to recover the memory of those who were and will be thrown to the ground by those who remain erected, Silêncio Coletivo presents Anunciação a new exhibition installation at HANGAR, in Lisbon.
The duo, formed by the Brazilian artists Jaime Lauriano and Igor Vidor, covers the walls of the exhibition space with repeating photos of uprisings and monuments with a red filter. Arranged in the installation are flat images cutouts of propped monuments, in dubious positions between falling and rising, as well as a set of religious ceramics from Candomblé.
To orchestrate the revisit to the biblical episode of the Annunciation (Anunciação) by Silêncio Coletivo, the iconographic models provided by the colonial Christian tradition are declared obsolete. It is important to begin by pointing out the temporal complexity of this episode: at the same instant that the placid scene in which the archangel Gabriel announces the coming of the son of God through Mary's immaculate womb takes place, the horrifying proclamation of Jesus' body on the cross is also enacted, hanging dead, with his hands drilled. The cross, a monument of public display of death, becomes a symbol of life. In this way, the annunciation of life is the same as that of death: will be born the one who will die for us.
In this game of contradictions, Lauriano and Vidor propose the construction of a condemnatory pantheon, using the very mechanisms of memory for a planned oblivion - or is it this planned oblivion that consubstantiates a calculated project of memory? That Annunciation which prophesizes ruins and announces the arrival of scars already centuries old, subverts the conventional temporality and proposes the future genesis of something that had already been - or should be - annihilated. In this installation, creation and destruction are not forces that cancel each other out, but vectors that question, in their own shock, the reasons for something being created or destroyed. The incontestability of this time - in a resignation resulting in a problematic collective silence - resembles that of colonial history, which, although it engenders multiple readings, many of them contradictory, blinds itself to revisionism and shoots the narrative as eternal, unscathed, and encapsulated.
Silêncio Coletivo already exposes this paradox guided by Christian and colonial ideals in the work Do pó ao pó (From dust to dust) from 2022, in its last exhibition in Portugal. This paradox was thoroughly analyzed by the Portuguese priest Antonio Vieira - from whose posthumous book part of the title of the present text is taken - in his 1672 Ash Wednesday Sermon. Vieira argues about the complexity and difficulty of understanding the biblical text that announces that from dust we came, dust we are, and to dust we shall return. How, then, can we convert ourselves to something we already are? And how to understand that we are dust in the present, when what the eyes expose is that we are flesh?
This temporal enigma would be given as a case to be solved by the Yoruba worldview of Candomblé, which understands questions of ancestry as devices of presence and future continuity. From this matrix of thought, we are freed by an enlargement of the understandings of temporality, ancestry, and materiality, in comparison to the limiting Eurocentric categorizations that have been dictated to us.
One of the most effective and provocative ways to declare the obsolescence of ideas and images is not to discard them, but to turn them inside out. In Anunciação, images of controversial monuments are repeated, emptying them of their materiality and giving them another meaning by inserting their representations in a questioning context. The artists confront a Eurocentric tradition that to empty materiality is also to empty meaning; whereas in the Yoruba vision, ancestry overflows the meaning of materiality, placing it in a space of potentiality. This understanding of the relations between meaning and matter, therefore, can enlighten us to read that an apparently iconoclastic act is, in fact, the proposition of a (new) history long neglected, dissonant from the one that has always been begrudgingly imposed on us.
In this maze of two-dimensional images on a red background, there is a set of religious vessels in raw ceramic, called quartinhas and quartilhões. This strange body to the surrounding images is apparently naive, but deeply powerful, like a Trojan horse: they are Candomblé healing objects that bring purity itself as an impure element in a colonialist culture that claims to be unscathed. These receptacles contain water - content and continent at the same time - which slowly evaporates through the porosity of the ceramic and needs constant replenishment and attention. The water contained in the ceramics is slowly drunk by the entities to which they are offered, the evaporation being an overflowing healing ritual. While the flat images emptied of the volume of the stone monuments aim at the robustness of a solid, unbeatable and perennial history, the quartinhas and quartilhões relate to the ideas of substance, element, fragility and ephemerality. Strategically installed, they place themselves in enemy territory and promote healing, fighting armed with other epistemes.
The installation relates to the insurgent wave of contestation of monuments honoring events and people with stances today understood as criminal but normalized for centuries through a sophisticated device of power maintenance. This political stratagem inserts a cyclical conduct of permissibility before these brutal tributes, which laureate on the wounded earth the incisors of their own scars, in a planned geography of the power of memory. The downfall of a series of monuments around the world catalyzed by the death of George Floyd, in 2020, and the burning of the statue dedicated to the Brazilian bandeirante Borba Gato by the group Revolução Periférica, in São Paulo, are examples of living uprisings. These insurrections do not seek to dwell on an unredeemable and unpayable colonial past, but to contain the symptomatic presence of this violent past in the present and in the future - after all, every uprising is a downfall.
Anunciação is set in lands of which history is sore but not uncomfortable, where the inertia of time and the dormancy of uprisings allow hundreds of pelourinhos (a certain type of pillories) to remain intact on Portuguese soil, remembered as the proud cultural patrimony of the heroic nation in a celebratory logic. These columns where black slaves were upholdingly tied and flogged are, at times, travestied as monuments that pay homage to the navigations or royal obelisks, without realizing that their new camouflage is, in fact, a balangandan that accentuates and alerts to the macro-historical dynamics that anchored those pillories there. Nevertheless, they remain standing. Meanwhile, a few days ago, members of Rio de Janeiro's Civil Police demolished a memorial to the 28 victims killed in the Jacarezinho massacre, invading the community with armored vehicles and wiping out the memory of those they had already annihilated. Perhaps Anunciação is an ultimate device of reflection: it shows only what is already present, without changing anything, letting itself be faced with its own reflection long enough for it to become unbearable.
"To announce" connects semantically to the idea of the future, of prophesying or warning about something that is to come; while "to denounce," in this same battleground of words, refers to something that has already had its origin in the past. Lauriano and Vidor rub the acts of announcing and denouncing until they become hybrid phenomena: good news and bad omen, prophecy and diagnosis, blessing and curse, announcement and denunciation. They are a duo and this work can only happen as a duo, in constant dialog, in two times, today and always: in revisiting a decolonial Brazilian history, it is always impossible to be only one.
Texto originalmente publicado na exposição individual “Anunciação” do Silêncio Coletivo no HANGAR, em Lisboa, de 21 de maio a 2 de julho de 2022
Brasil: vermelho cor de brasa. Rompante de sangue à cabeça, estado de alerta e vigília, sangue que dá e tira a vida. Buscando reaver a memória dos que foram e serão deitados ao chão pelos que permanecem erigidos, o Silêncio Coletivo apresenta Anunciação, inédita exposição-instalação no HANGAR, em Lisboa.
O duo, formado pelos artistas brasileiros Jaime Lauriano e Igor Vidor, reveste as paredes do espaço expositivo com a repetição de fotos de levantes e monumentos em filtro vermelho. Dispostos na instalação, há recortes de imagens planificadas de monumentos escorados, em posição dúbia entre a queda e a ascensão, além de um conjunto de cerâmicas religiosas do candomblé.
Para orquestrar a revisita ao episódio bíblico da Anunciação pelo Silêncio Coletivo, declaram-se obsoletos os modelos iconográficos proporcionados pela tradição cristã colonial. É importante começar ressaltando a complexidade temporal desse episódio: no mesmo instante em que acontece a cena plácida em que o arcanjo Gabriel anuncia a vinda do filho de Deus através do ventre imaculado de Maria, decreta-se também o estarrecedor apregoamento do corpo de Jesus na cruz, que pende morto, fincado pelas mãos atravessadas. A cruz, monumento de exibição pública da morte, torna-se símbolo de vida. Dessa forma, a anunciação da vida é a mesma que a da morte: nascerá o que morrerá por nós.
Nesse jogo de contradições, Lauriano e Vidor propõem a construção de um panteão condenatório, utilizando-se dos próprios mecanismos da memória para um planejado esquecimento – ou é este esquecimento planejado que consubstancia um calculado projeto de memória? Essa Anunciação, que profetiza ruínas e anuncia a chegada de cicatrizes já seculares, subverte a temporalidade convencionada e propõe a gênese futura de algo que já fora – ou deveria ser – aniquilado. Nesta instalação, a criação e a destruição não são forças que se anulam, mas vetores que questionam, em seu próprio choque, os motivos de algo ser criado ou destruído. A incontestabilidade desse tempo – numa resignação resultante em um problemático silêncio coletivo – se assemelha à da história colonial que, embora engendre múltiplas leituras, muitas delas contraditórias, se blinda a um revisionismo e dispara a narrativa como eterna, incólume e encapsulada.
O Silêncio Coletivo já expõe esse paradoxo pautado pelos ideais cristãos e coloniais na obra Do pó ao pó, de 2022, em sua última exposição em Portugal. Paradoxo esse minuciosamente analisado pelo padre português Antônio Vieira – de cujo livro póstumo é roubado parte do título do presente texto – em seu Sermão da Quarta-Feira de Cinzas de 1672. Vieira argumenta acerca da complexidade e da dificuldade de entendimento do texto bíblico que anuncia que do pó viemos, pó somos e ao pó retornaremos. Como, portanto, nos converteremos a algo que já somos? E de que forma compreender que somos pó no presente, quando o que os olhos denunciam é que somos carne?
Esse enigma temporal seria dado como caso resolvido pela cosmovisão yorubá do candomblé, que compreende as questões de ancestralidade como dispositivos de presença e de continuidade futura. A partir dessa matriz de pensamento, somos libertos por um alargamento das compreensões sobre temporalidade, ancestralidade e materialidade, em comparação às limitantes categorizações eurocêntricas que nos foram ditadas.
Uma das formas mais eficazes e provocativas de declarar a obsolescência de ideias e imagens não é descartá-las, mas virá-las do avesso. Na Anunciação, são repetidas imagens de monumentos controversos, esvaziando-os em sua materialidade e os dotando de outro sentido ao inserir suas representações em contexto questionador. Os artistas confrontam uma tradição eurocêntrica de que esvaziar a matéria é também esvaziar o sentido; enquanto na visão yorubá, a ancestralidade transborda o sentido da matéria, colocando-a em um espaço de potencialidade. Essa compreensão das relações entre o sentido e a matéria, portanto, pode nos esclarecer a leitura de que um ato aparentemente iconoclasta é, na verdade, a proposição de uma (nova) história há muito negligenciada, dissonante da que sempre nos foi imposta a contragosto.
Nesse labirinto de imagens bidimensionais de fundo vermelho, há um conjunto de vasos religiosos em cerâmica crua, chamados de quartinhas e quartilhões. Esse corpo estranho às imagens que o cercam é aparentemente ingênuo, mas profundamente poderoso, como um cavalo de Troia: são objetos de cura do candomblé que trazem a própria pureza como elemento impuro numa cultura colonialista que se diz impoluta. Esses receptáculos contêm água – conteúdo e continente ao mesmo tempo –, que lentamente evapora pela porosidade da cerâmica e precisa de reabastecimento e atenção constantes. A água contida nas cerâmicas é lentamente bebida pelas entidades a que são ofertadas, sendo a evaporação um ritual de cura transbordante. Enquanto as imagens planas esvaziadas de volume dos monumentos pétreos almejam a robustez de uma história sólida, imbatível e perene, as quartinhas e os quartilhões relacionam-se às ideias de substância, elemento, fragilidade e efemeridade. Estrategicamente instaladas, colocam-se em território inimigo e promovem a cura, lutando armadas com outras epistemes.
A instalação se relaciona com a insurgente onda de contestação de monumentos que homenageiam eventos e pessoas com posturas hoje entendidas como criminosas, mas normalizadas por séculos através de um sofisticado dispositivo de manutenção de poder. Esse estratagema político insere uma cíclica conduta de permissibilidade perante essas homenagens brutais, que laureiam na terra ferida os incisores das próprias cicatrizes, em uma planejada geografia do poder da memória. A derrubada de uma série de monumentos pelo mundo catalisada pela morte de George Floyd, em 2020, e o ateamento da estátua dedicada ao bandeirante paulista Borba Gato pelo grupo Revolução Periférica, em São Paulo, são exemplos de vivos levantes. Essas insurreições não buscam remoer um passado colonial, inapagável e impagável, mas conter a presença sintomática desse violento passado no presente e no futuro – afinal, todo levante é uma queda.
Anunciação é assente em terras cuja história é inflamada mas não incômoda, onde a inércia do tempo e a dormência dos levantes permitem que centenas de pelourinhos continuem intactos em solo luso, rememorados como altivos patrimônios culturais da nação heroica em uma lógica celebrativa. Essas colunas em que escravos negros eram ufanamente amarrados e açoitados são, por vezes, travestidas como monumentos que homenageiam as navegações ou obeliscos régios, sem perceber que sua nova camuflagem, na verdade, é um balangandã que acentua e alerta para as dinâmicas macro-históricas que fincaram ali aqueles pelourinhos. Sem embargo, permanecem de pé. Enquanto isso, há poucos dias, integrantes da Polícia Civil do Rio de Janeiro demoliram um memorial às 28 vítimas mortas na chacina do Jacarezinho, invadindo a comunidade com veículos blindados e apagando a memória de quem já haviam aniquilado o corpo. Talvez a Anunciação seja um dispositivo último de reflexão: mostra-se apenas o que já é presente, sem alterar nada, e deixa-se encarar com seu próprio reflexo por tempo suficiente para que se torne insuportável.
“Anunciar” conecta-se semanticamente à ideia de futuro, de profetizar ou alertar sobre algo que está por vir; enquanto “denunciar”, nesse mesmo campo de batalha das palavras, atesta algo que já teve sua origem no passado. Lauriano e Vidor friccionam os atos de anunciar e de denunciar até que se tornem fenômenos híbridos: boa-nova e mau agouro, profecia e diagnóstico, bênção e maldição, anúncio e denúncia. São uma dupla e esse trabalho só pode acontecer em dupla, em diálogo constante, em dois tempos, hoje e sempre: na revisitação de uma história brasileira decolonial, é sempre impossível ser somente um.
/
Annunciation (or History of the Future)
Brazil: ember-red. Rush of blood to the head, alert and vigilant state, life-giving and life-taking blood. Seeking to recover the memory of those who were and will be thrown to the ground by those who remain erected, Silêncio Coletivo presents Anunciação a new exhibition installation at HANGAR, in Lisbon.
The duo, formed by the Brazilian artists Jaime Lauriano and Igor Vidor, covers the walls of the exhibition space with repeating photos of uprisings and monuments with a red filter. Arranged in the installation are flat images cutouts of propped monuments, in dubious positions between falling and rising, as well as a set of religious ceramics from Candomblé.
To orchestrate the revisit to the biblical episode of the Annunciation (Anunciação) by Silêncio Coletivo, the iconographic models provided by the colonial Christian tradition are declared obsolete. It is important to begin by pointing out the temporal complexity of this episode: at the same instant that the placid scene in which the archangel Gabriel announces the coming of the son of God through Mary's immaculate womb takes place, the horrifying proclamation of Jesus' body on the cross is also enacted, hanging dead, with his hands drilled. The cross, a monument of public display of death, becomes a symbol of life. In this way, the annunciation of life is the same as that of death: will be born the one who will die for us.
In this game of contradictions, Lauriano and Vidor propose the construction of a condemnatory pantheon, using the very mechanisms of memory for a planned oblivion - or is it this planned oblivion that consubstantiates a calculated project of memory? That Annunciation which prophesizes ruins and announces the arrival of scars already centuries old, subverts the conventional temporality and proposes the future genesis of something that had already been - or should be - annihilated. In this installation, creation and destruction are not forces that cancel each other out, but vectors that question, in their own shock, the reasons for something being created or destroyed. The incontestability of this time - in a resignation resulting in a problematic collective silence - resembles that of colonial history, which, although it engenders multiple readings, many of them contradictory, blinds itself to revisionism and shoots the narrative as eternal, unscathed, and encapsulated.
Silêncio Coletivo already exposes this paradox guided by Christian and colonial ideals in the work Do pó ao pó (From dust to dust) from 2022, in its last exhibition in Portugal. This paradox was thoroughly analyzed by the Portuguese priest Antonio Vieira - from whose posthumous book part of the title of the present text is taken - in his 1672 Ash Wednesday Sermon. Vieira argues about the complexity and difficulty of understanding the biblical text that announces that from dust we came, dust we are, and to dust we shall return. How, then, can we convert ourselves to something we already are? And how to understand that we are dust in the present, when what the eyes expose is that we are flesh?
This temporal enigma would be given as a case to be solved by the Yoruba worldview of Candomblé, which understands questions of ancestry as devices of presence and future continuity. From this matrix of thought, we are freed by an enlargement of the understandings of temporality, ancestry, and materiality, in comparison to the limiting Eurocentric categorizations that have been dictated to us.
One of the most effective and provocative ways to declare the obsolescence of ideas and images is not to discard them, but to turn them inside out. In Anunciação, images of controversial monuments are repeated, emptying them of their materiality and giving them another meaning by inserting their representations in a questioning context. The artists confront a Eurocentric tradition that to empty materiality is also to empty meaning; whereas in the Yoruba vision, ancestry overflows the meaning of materiality, placing it in a space of potentiality. This understanding of the relations between meaning and matter, therefore, can enlighten us to read that an apparently iconoclastic act is, in fact, the proposition of a (new) history long neglected, dissonant from the one that has always been begrudgingly imposed on us.
In this maze of two-dimensional images on a red background, there is a set of religious vessels in raw ceramic, called quartinhas and quartilhões. This strange body to the surrounding images is apparently naive, but deeply powerful, like a Trojan horse: they are Candomblé healing objects that bring purity itself as an impure element in a colonialist culture that claims to be unscathed. These receptacles contain water - content and continent at the same time - which slowly evaporates through the porosity of the ceramic and needs constant replenishment and attention. The water contained in the ceramics is slowly drunk by the entities to which they are offered, the evaporation being an overflowing healing ritual. While the flat images emptied of the volume of the stone monuments aim at the robustness of a solid, unbeatable and perennial history, the quartinhas and quartilhões relate to the ideas of substance, element, fragility and ephemerality. Strategically installed, they place themselves in enemy territory and promote healing, fighting armed with other epistemes.
The installation relates to the insurgent wave of contestation of monuments honoring events and people with stances today understood as criminal but normalized for centuries through a sophisticated device of power maintenance. This political stratagem inserts a cyclical conduct of permissibility before these brutal tributes, which laureate on the wounded earth the incisors of their own scars, in a planned geography of the power of memory. The downfall of a series of monuments around the world catalyzed by the death of George Floyd, in 2020, and the burning of the statue dedicated to the Brazilian bandeirante Borba Gato by the group Revolução Periférica, in São Paulo, are examples of living uprisings. These insurrections do not seek to dwell on an unredeemable and unpayable colonial past, but to contain the symptomatic presence of this violent past in the present and in the future - after all, every uprising is a downfall.
Anunciação is set in lands of which history is sore but not uncomfortable, where the inertia of time and the dormancy of uprisings allow hundreds of pelourinhos (a certain type of pillories) to remain intact on Portuguese soil, remembered as the proud cultural patrimony of the heroic nation in a celebratory logic. These columns where black slaves were upholdingly tied and flogged are, at times, travestied as monuments that pay homage to the navigations or royal obelisks, without realizing that their new camouflage is, in fact, a balangandan that accentuates and alerts to the macro-historical dynamics that anchored those pillories there. Nevertheless, they remain standing. Meanwhile, a few days ago, members of Rio de Janeiro's Civil Police demolished a memorial to the 28 victims killed in the Jacarezinho massacre, invading the community with armored vehicles and wiping out the memory of those they had already annihilated. Perhaps Anunciação is an ultimate device of reflection: it shows only what is already present, without changing anything, letting itself be faced with its own reflection long enough for it to become unbearable.
"To announce" connects semantically to the idea of the future, of prophesying or warning about something that is to come; while "to denounce," in this same battleground of words, refers to something that has already had its origin in the past. Lauriano and Vidor rub the acts of announcing and denouncing until they become hybrid phenomena: good news and bad omen, prophecy and diagnosis, blessing and curse, announcement and denunciation. They are a duo and this work can only happen as a duo, in constant dialog, in two times, today and always: in revisiting a decolonial Brazilian history, it is always impossible to be only one.
Texto originalmente publicado na exposição individual “Anunciação” do Silêncio Coletivo no HANGAR, em Lisboa, de 21 de maio a 2 de julho de 2022